Conto de Natal

Por: Manuel António Araújo

Dos andares de cima vinham ininterruptas vozes em encruzilhadas babélicas, todas cheias duma alegria tão própria e tão triste.

Napoleão apenas cheirava os aromas que com as vozes rolavam, numa levitação, por toda a casa. De resto, de olhos semicerrados na luz plástica da chaminé, muito paciente, à espera das nove.

Napoleão jantava sempre às nove. Desde os tempos em que os esperava espapaçado no sofá, sacudindo levemente os tímpanos, quando eles chegavam, por causa dos beijos repenicados que ambos lhe davam, cada um em sua orelha. Que doidos! E depois largavam a correr um atrás do outro, à volta da mesa, e acabavam num enorme estrondo na tijoleira, beijando-se também. Desde esses tempos que Napoleão jantava às nove. A única diferença, a enorme diferença, é que a alegria dos beijos acabara, as corridas acabaram, e até a Rosinha (há quanto tempo não via a Rosinha!), que lhe dava biscoitos embebidos em chocolate quente, nas noites de natal, nunca mais entrou naquela sala, nunca mais lhe coçou o nariz sensível, nunca mais o fez deitar de costas para lhe amaciar o pelo branco, do fundo da barriga ao pescoço. Por falar em pescoço, não lhe fora renovada a coleira, e o guizo enrouqueceu com a ferrugem.

Uma luz plástica vermelha a acender e a apagar...

Era o seu primeiro natal sem rabanadas. No natal anterior comera de tudo, desde aletria aos figos secos com nozes incrustadas, desde as passas aos sonhos. Era um bicho omnívoro. Fazia, justamente, um ano que se enroscara no musgo do presépio, ao lado dos reis magos, da vaquinha e do burrinho, para aquecer o Menino Jesus com o seu hálito ronronante. Mas seguia as traquinices da Rosinha que, de vez em quando, lhe trazia uma guloseima.

Napoleão, deitado em cima do sofá verde, salivava quando a lembrança do bacalhau lhe trouxe o cheiro da ceia de natal. Acontecia-lhe muitas vezes. Sobretudo desde que Mariana e Eduardo se separaram. Por exemplo, ontem jantara uma lata de gatex, uma comida que dá na televisão e, enquanto comia vieram-lhe à lembrança os refogados de cabrito, aos domingos. Imediatamente cheirou o molho, e a panela a fumegar representou-se-lhe, e já não comeu o enlatado. Eduardo aborreceu-se, e Napoleão, pensativo e triste, refugiou-se no canto do sofá verde.

A separação tornara-o muito sensível. Diziam que era frio e indiferente. Uma ova! Napoleão já chorara. Como agora. No andar de cima comia-se o bacalhau e o polvo, batiam-se os talheres, e os gritos excitados das crianças misturavam-se com os estalidos palatais do vinho tinto, e ele lembrou-se da última ceia de natal. Quando a Mariana (sempre achara Mariana muito sedutora e perigosa) lhe fez umas festas no pescoço, sussurrando-lhe um bom natal e feliz ano novo...quando Eduardo o pôs no colo e fez tilintar o guizo, enquanto bebia um cálice de licor trazido pelo Rui, amigo de infância de Mariana...quando a Rosinha, já ele no seu lugar junto ao presépio, lhe levou biscoitos embebidos em chocolate quente….quando, na distribuição das prendas, outra vez Mariana, lhe tirou o guizo velho e lhe ofereceu um novo, todo doiradinho, o mesmo que tem hoje...quando, premonitoriamente (ou talvez não), ela ofereceu a Eduardo um romance que se chamava História duma Infidelidade...quando pulava de colo em colo, petiscava aqui e ali...

Napoleão chorava. Dos olhos amendoados escorregaram duas lágrimas tão quimicamente humanas!...

Do sofá arrastou a sua melancolia para o peitoril da janela, espreitar a rua. Apenas as luzes dos postes públicos. Umas luzes amareladas e solitárias que iluminavam o asfalto escorregadio. Nem um carro passava. Apenas as casas, o céu negro e o silêncio. Passou um olhar pelas janelas do prédio, e em todas era natal, pelo piscar multicolor refletido nos vidros. Lentamente, olhou a luz plástica e vermelha que piscava, solitária e pobre junto à lareira apagada...

Voltou para o sofá. Enroscou-se ao canto, meio escondido pela almofada. Fechou os olhos para não ver os reflexos esfarrapados da luz plástica, fechou os ouvidos para não ouvir o natal feliz dos outros. Enquanto isso, esperou que Eduardo chegasse. E quando chegasse Eduardo sabia que lhe acariciaria o focinho, longamente, com os olhos postos na solidão, chorando...

Desde que Mariana o deixou e levou a Rosinha, Eduardo chora sempre um pouco junto de mim...!

A porta abriu-se, chegou Eduardo.

- Olá, Napoleão! desculpa vir um pouco tarde, mas tu sabes que eu gosto de passear sozinho. As ruas não têm ninguém. Já viste as ruas? Nem gatos, Napoleão!

Eduardo despiu o sobretudo preto, já muito arruçado nos cotovelos, tirou do bolso um embrulhinho em papel de prata, desembrulhou. Apareceu uma caixinha, abriu a caixinha e tirou um pequeno guizo de ouro que fez tilintar. Napoleão sorriu-lhe. Sorriu com a luminosidade que punha nos olhos de amêndoa quando estava feliz. Chegou-se a ele. Chegou-se mais a ele. A noite estava definitiva. Nos apartamentos próximos cantava-se e fazia-se uma algazarra no desembrulhar das prendas.

Eduardo abraçou-lhe o pescoço, beijou-lhe o focinho, um tanto áspero da velhice. Napoleão dava marradinhas, fazendo tilintar o guizo novo.

Assim estiveram, abraçados, com a luz vermelha a projectar-lhes as sombras intermitentes nas paredes nuas e brancas.

Eduardo chorava....



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