Entre Aspas #9


Por: Manuela Rainho



Os escritores são os exorcistas dos seus próprios demónios. 

Mário Vargas Llosa




De acordo com as leituras que fiz de alguns dos romances de Fernando Dadim, penso que esta citação que pus em epígrafe se adequa lindamente ao que este autor escreve.


«“Eu não peço nada a ninguém! Só quero respeito para quem trabalha!“ Um outro que se situava à ilharga do que contestava Humberto Delgado disse: “Liberdade para o trabalhador, para emigrar! Eu não sou comunista, mas, enquanto não concederem isso, a opressão não acaba!”. E o jovem que acabara de falar terminou dizendo: ”Abaixo Salazar! Viva a república! Viva Humberto!»
Hoje há Circo em Torgo - pp. 48


Infelizmente ainda não li o seu romance "O Enjaulado”, dado à estampa em 2007. Mas li “Hoje há Circo em Torgo”, romance publicado em 2011, que nos fala da vida dum Portugal salazarista e bolorento. É uma obra onde perpassa uma fina ironia, que retrata de fora excelente a mentalidade puritana e de fachada das sociedades inerentes às cidades de interior. Simultaneamente, evoca travessuras duma infância que me parece ser feliz.


«Até que Hermengarda pôs a interrogação: “Alguém já praticou adultério em pensamento?”. E o copo rodopiou de um lado para o outro sem sentido, apontando em todas as direcções e para nenhuma. Alguém exclamou: “todos e todas!”» 
Hoje há Circo em Torgo - pp.115/116



Também li e apresentei, penso que em 2012, o seu terceiro romance “O Suicídio dos Pássaros”. Não resisto a registar um incidente que suscitou em todos os presentes um sorriso inesperado. Ao dissertar sobre o título desta obra, realcei a metáfora que, segundo o meu imaginário, alia «pássaro» a «liberdade» e o facto dessa mesma liberdade ter vindo a ser sistemática e pertinentemente atropelada pela humanidade. Muito pragmaticamente, o autor referiu que o título fora escolhido por ter lido a expressão e a considerar surpreendente. Desta dualidade de abordagens ao título e ao que o mesmo sintetiza relativamente ao conteúdo do romance se pode inferir que, enquanto o autor buscou no título a sonoridade e o inesperado dos vocábulos que o integram, o crítico encontrou no título o eco do que o romance aborda: a problemática da liberdade numa perspectiva de género, de geração.


«Mal entrou teve a sensação de ter penetrado na antecâmara da morte à qual tinha sobrevivido graças a uma divinal coincidência, um acaso: O esquecimento do seu telemóvel num camarim! Como nós somos frágeis e dependentes de pequenos nadas, pormenores por vezes inócuos que só fazem sentido quando os olhamos retrospectivamente a partir do nosso presente; A unidade da nossa vida psíquica, da nossa personalidade, da nossa consciência: o centro de nó próprios a partir do qual nos gerimos no mundo, e que por isso o absolutizamos.» 
O Suicídio dos Pássaros - pp.235.



Penso que este autor, através dos romances que já publicou, nos oferece a oportunidade de nos revermos ou identificarmos através das suas personagens com a sociedade em que estamos inseridos. Todos nós conhecemos uma Dª Pulquéria ou uma Laura; uma Hermengarda ou um Gualter… é esse jogo de espelhos onde nos movimentamos na narrativa de Fernando Dadim, que se torna apaixonante e nos leva a concluir que apesar de sermos cada um de nós um ser único e irrepetível temos muito mais em comum com os outros do que à partida gostaríamos de ter. Essa consciência de pertencer ao todo torna-se inquietante e confortadora. E isso é possível experienciar, ao ler os romances de Fernando Dadim.




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