A Etnografia do Outono em Trás-os-Montes

Por: Alexandre Parafita

O outono não é só esta paleta de cores que enobrece a paisagem, servida pelo bailado de folhas e restos de flores ao sabor do vento. O outono é um tempo de libertação ritual, um tempo em que a Natureza se despoja do que não é necessário e entra em recolhimento e introspeção para enfrentar o duro inverno e preparar a renovação («The Universe cannot pour fresh new energy into your “cup” if it's constantly full of old stuff», assim escreve Clear Englebert em Feng Shui Demystified). Mas é também um tempo que projeta nos povos a consciência de que se está perante um ciclo natural de reflexão e de preparação para o inevitável inverno da vida. As festas e celebrações de outono são disso o testemunho, como sucede com as festividades do dia de Todos os Santos e do dia de Fiéis e Defuntos (a 1 e 2 de novembro, respetivamente), celebrações que anunciam a iminente proximidade do inverno, numa época em que a terra (símbolo feminino) aparece estéril após as colheitas do verão, e se prepara, no seu inevitável repouso, para, recebendo a semente (símbolo masculino), voltar a frutificar e assegurar a continuidade da vida.



Não admira, pois, que, neste tempo de introspeção, o culto dos mortos traga consigo uma grande energia simbólica. Muitas tradições do dia de Fiéis e Defuntos perderam-se já, como sucedeu com as antigas “Procissões dos Ossos”. Os criminosos, sentenciados a morrer nas forcas, ali ficavam a apodrecer e ninguém recolhia os seus corpos. Sem amigos e, tantas vezes, rejeitados pela família, aqueles míseros esqueletos aguardavam dias, semanas e meses por uma oração ou por um gesto de compaixão que não havia. Era então neste dia que os irmãos das Misericórdias se deslocavam às forcas, em procissão, cobertos de negros balandraus, e recolhiam os ossos em esquifes, transportando-os para os seus locais sagrados de enterramento, num cerimonial de apelo profundo à compaixão divina para com a alma daqueles infelizes, que sempre terminava com uma missa. Sabe-se que, mesmo quando não havia ossos a recolher, a procissão se realizava à mesma, num tempo em que os rituais tinham um sentido inabalável.


As refeições dos defuntos


É tradição em algumas aldeias transmontanas a festa do “pau das almas”. Os rapazes, na manhã do feriado de 1 de novembro, vão ao monte cortar e apanhar um carro de lenha, para à tarde ser leiloada no adro da igreja, sendo a receita aplicada no dia seguinte (dia de Fiéis e Defuntos) na celebração de missas e ofícios em memória das almas do Purgatório. Um pouco por toda a região, resiste ainda a tradição de ofertar, através de representações simbólicas, uma refeição dos defuntos. Exemplo disso é a distribuição do “pão das almas” aos pobres, à porta dos cemitérios no dia de Fiéis e Defuntos (hoje traduzido numa esmola em dinheiro) como retribuição pelas suas orações em sufrágio das almas que penam no Purgatório. Pela mesma razão, existe o chamado “pão do defunto”, oferecido a todos os que acompanharam o enterro, como forma de agradecimento pelas preces de cada um.
Outrora, no dia 1 de novembro, comiam-se castanhas assadas (descascadas designam-se “bilhós”) nos cemitérios e deixavam-se as que sobravam para refeição das almas durante a noite. E o mesmo faziam as famílias nas suas próprias casas com os magustos dessa noite, deixando ficar os “bilhós” sobrantes na lareira para alimento das almas. E no dia seguinte, ninguém os comia, pois acreditava-se que haviam sido lambidos pelos defuntos da casa.





As alegorias meteorológicas


Mas o outono é também um tempo em que se impõem as alegorias meteorológicas do povo transmontano. Sendo uma época em que a região entra num longo período agreste, ventoso e chuvoso, a requerer respostas empíricas prontas, é a hora da sabedoria popular vir ao de cima. E sentencia-se: “Outono sem chuva, vento e trovão, prepara-te para um ano de barriga em vão”, que o mesmo é dizer: “Se o outono vem sereno, ri-se o diabo no inverno”. Por isso, o povo sossega quando tudo bate certo, quando os tempos não andam trocados. Se as intempéries vêm em tempos certos, tudo nos meios rurais se acomoda, ao invés das grandes cidades, onde continuamos a assistir aos dramas das inundações e enxurradas. O povo das aldeias, na medida em que continua a orientar-se por saberes antigos, está geralmente prevenido: “Se a aurora está ruiva, ou traz vento ou traz chuva” e “Céu pedrento, muita chuva e muito vento”. Ou então: “Amigos de ocasião são como o bom tempo, mudam com o vento” até porque, diz-se também, “O vento tanto junta a palha como a espalha”, ou “Vento de todo o lado é mandado p’lo diabo”.

Preocupações reforçadas, em termos de economia doméstica, são também próprias do outono rural. Quando se dependia de colheitas próprias (longe dos tempos de hoje em que se demanda tudo nos supermercados…), entrava-se agora num tempo de pesadelo: as arcas iam ficando vazias e os celeiros também. Cresciam as preocupações com o equilíbrio e a sobrevivência dos lares, os gastos caseiros, o sustento e rendimento dos animais. Era então que os mais velhos contavam aos mais novos a história da Cigarra e da Formiga. E no fim, tudo ia de novo dar a um provérbio, essa fórmula mágica que tanta sabedoria acumulada transmite: «Do cerejo ao castanho bem me amanho, do castanho ao cerejo é que me vejo», que equivale a dizer: “Dias de muito, vésperas de nada”, “Poupa enquanto há, que não havendo poupado está”, “Antes côdea de pão com amor que galinha com dor” ou “Antes o penhor na arca que o fiador na praça”.


Concluindo. A etnografia é o modo de olhar um povo e de o entender e valorizar na sua cultura identitária. É a capacidade de reinterpretar as suas vivências, seja as do passado, seja as do presente, uma reinterpretação que, mais do que o reconhecimento da dimensão estética e ética do povo, será sempre uma forma lúcida de projetar o futuro, na convicção de que as suas raízes culturais são um elemento básico e estruturador imprescindível. Tal foi o princípio e a motivação para estas breves notas que redigi sobre algumas das pequenas franjas do vastíssimo universo intangível transmontano.



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Natural de Sabrosa, é Doutorado em Cultura Portuguesa (na área do Património Cultural Imaterial) e Mestrado em Ciências da Comunicação (especialidade de Antropologia da Comunicação). É docente do ensino superior, escritor jornalista e investigador nas áreas da mitologia e do património imaterial. É autor de várias dezenas de livros, em domínios multidisciplinares. Grande parte da sua obra faz parte do Plano Nacional de Leitura (PNL).



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