Filmar o Horizonte

Por: Vicente Alves do Ó


É raro acontecer, mas volta e meia, o cinema sai de Lisboa e avança para o Portugal de planícies, serras, florestas ou prados. Para o país onde o tempo demora e a vida tem outra leitura: é a vida muito mais intensa na sua composição que na vertigem das cidades. Tive oportunidade de filmar no Alentejo com o projecto “Florbela”. Duas semanas de rodagem em Vila Viçosa, terra natal de Florbela Espanca. Tinha oportunidade de sair da complexa arquitectura de Lisboa, cheia de cantos, de esquinas, duma urbanidade que fecha o filme num gesto quase claustrofóbico, como se o cinema fosse um olho inquisidor sobre a humanidade que corre dum lado para o outro, procurando um sentido que apenas se encontra nos sinais de trânsito ou nos afazeres do dia de trabalho. Mas ali, na paisagem, nada disso existia. A câmara tinha a vastidão diante de si, tão despojada quanto intensa. Tão livre como assustadora. Tudo o que coubesse no quadro tinha uma razão ou, se não tinha, adquiria um peso tão grande que ganhava qualquer possibilidade de ser filme – era o mundo que ganhava vantagem em relação ao cinema. 



Filmar o horizonte é difícil. É preciso imaginar toda uma construção narrativa que lhe dê a função – mais do que apenas paisagem. É preciso que dentro da narrativa ou do comportamento, é preciso que dentro da ideia ou escondido algures, exista uma voz nessa paisagem filmada, nesse campo imenso que é Portugal. 



Nunca tive oportunidade de filmar no Norte do País. Espero pela oportunidade. É certamente uma outra forma de pensar e de estar, onde a história tem que viver colada ao que se apresenta: seja a serra, o planalto, a solidão ou a neve. Seja o relevo, o escuro do casario, seja o silêncio que nos serve de metáfora para um país desertificado e abandonado. Porque quando pensamos o horizonte português vem sempre essa ideia sublime de perdição e utopia. De melancolia que nos define tão bem e que nunca nos abandona. 

Resta saber como podemos filmar esse estado físico e emocional. Como podemos nós através do cinema ser fiéis a nós próprios e à paisagem que no fundo diz tanto de nós – sem que seja apenas paisagem. 



António Reis filmou Trás-os-Montes na sua plenitude de condição. Falta agora voltar lá e filmar este tempo – tempo permanece, que mudou, que fugiu? Falta isso. 

Ou antes – faltam realizadores que filmem o país na sua verdade.


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Vicente Alves do Ó, assinou o primeiro argumento em 2000, “Monsanto”, um telefilme da SicFilmes realizado pelo moçambicano Ruy Guerra. Este projecto abriu-lhe as portas da televisão e do cinema. Como realizador de longas metragens, estreou-se em 2011 com “Quinze Pontos na Alma” e em 2012 estreou “Florbela”, filme inspirado na vida e obra da poetisa Florbela Espanca. Prepara a sua próxima longa-metragem, lançou o segundo romance “Florbela, Apeles e Eu” e dá aulas de práticas de plateau na Escola de Actores – ACT. É um dos fundadores dos prémios Sophia.



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