Nasci em Barreiros, uma pequena aldeia do concelho de Valpaços. Cresci e fui educada neste contexto rural transmontano, longe dos “centros de decisão”. Foi aqui que moldei o meu carácter e a minha forma de estar e ver o mundo. Foi aqui que adquiri os valores que ainda hoje orientam a minha vida, que interiorizei uma matriz axiológica cristã e humanista. E, curiosamente, foi aqui que nasceu o meu interesse pela política. O meu pai foi Presidente de Junta de Freguesia durante mais de duas décadas. Apreciava a proximidade, a solicitude, a forma abnegada como o meu pai exercia o seu mandato, a determinação que colocava na defesa do desenvolvimento do concelho e da qualidade de vida da população. Eram essencialmente homens no exercício dos cargos políticos, o que traduzia de alguma forma esse preconceito de que os homens é que se deviam dedicar à vida pública, sendo reservada às mulheres a vida doméstica, a educação e acompanhamento dos filhos, a gestão e lida da casa. E nesse meio ainda não se questionava esta prática, na minha infância e adolescência.
Recordo-me de participar nas campanhas eleitorais, nas caravanas que na altura se faziam no encerramento das campanhas, mas, além disso, pouca margem de participação era dada às mulheres e, em maioridade, foi aos meus irmãos (homens!) que o meu pai incentivou a participar. Nas conversas sobre política não se envolviam as mulheres e eu era olhada com estranheza quando me intrometia, ainda jovem, nas conversas dos adultos sobre questões políticas. A verdade é que gostava de participar nessas (muitas) reuniões de amigos que o meu pai organizava em casa, sempre à volta da mesa como é tradição em Trás-os-Montes. Muitas vezes ficava apenas discretamente a assistir às conversas, absorvendo com interesse tudo quanto se dizia. Isto em finais da década de 80… A política era e permanecia, desta forma, um mundo de homens neste rincão transmontano. E assim se manteve até há muito pouco tempo, salvo raras exceções, até que a lei da paridade veio impor a representação de ambos os sexos nas listas, assegurando a representação mínima de 33,3% a cada um dos sexos.
Naturalmente, as tradições e a educação tiveram a sua influência. Neste caso, muitas mulheres aprenderam na infância que, como rezam os ditos populares da nossa região, “enquanto há homens não se confessam mulheres” ou “do homem a praça, da mulher a casa”, pelo que se coibiram de participar ativamente na política. Por certo já não seria assim nos grandes centros urbanos onde as mulheres foram progressivamente quebrando essas restrições e exigindo a oportunidade de participar, mas em Trás-os-Montes, e particularmente no meio rural, era esta a mentalidade dominante na minha juventude e a política era “coisa de homens”. Naturalmente também, tendemos a aprender com o exemplo, como foi o meu caso, embora só muito mais tarde tenha tido consciência disso.
Enquanto estudante universitária no Porto, a participação política não foi a minha prioridade. Tinha deixado um ambiente familiar e estava determinada a regressar à minha região pelo que tinha a noção de que seria uma estadia efémera e, sendo a mais velha de cinco irmãos e oriunda de uma família modesta, a minha prioridade foram os estudos pois tinha a consciência de que os meus pais tinham mais quatro filhos para educar, pelo que tinha de fazer o meu melhor para terminar no tempo previsto e com boa média para poder efetivar o mais rapidamente possível e assim libertar os meus pais dos pesados encargos que um filho a estudar longe de casa comporta. Ainda assim, não descurei a participação cívica e religiosa, integrando o grupo coral e o grupo de jovens da Igreja da Areosa, onde fui também catequista e onde participei em diversas iniciativas de âmbito social e solidário, para além do religioso. E consegui cumprir o objetivo traçado: acabei o curso de Línguas e Literaturas Modernas – Estudos Portugueses e Franceses na Faculdade de Letras da Universidade do Porto com a melhor média final, o que me valeu a distinção com o Prémio Fundação Eng.º António de Almeida e encheu de orgulho os meus pais e demais familiares e amigos e professores. Isto ensinou-me uma importante lição: um Transmontano pode chegar onde chegam os outros desde que se dedique e se esforce por isso. Claro que exige um esforço acrescido (o tempo das deslocações e os custos das mesmas, a distância do meio familiar, os custos com alojamento, entre outros aspetos), mas a nossa determinação e capacidade de trabalho permitem superar tudo.
Costumo dizer que em Trás-os-Montes se aprende muito cedo a lutar contra as adversidades: os extremos climatéricos e os caprichos do relevo exigem que desenvolvamos uma robustez física e psíquica particular. Durante séculos, os cuidados de saúde eram tão escassos e tão distantes, com acessos tão rudimentares, que qualquer fragilidade matava. Por outro lado, os Transmontanos tinham de conquistar terreno para sobreviver: os nossos olivais e vinhas em socalcos quase inacessíveis, em espaços muitas vezes conquistados às rochas graníticas, demonstram o que acabo de dizer. Desenvolvemos, assim, desde a infância, um espírito de sobrevivência e uma resiliência que justificam o sucesso de tantos daqueles que tentaram a sorte noutros países ou noutros locais e de muitos residentes neste território.
Creio que o apego à terra natal é outra das características dos Transmontanos. E é este apego que nos motiva para regressar, quando tal é possível. Foi o que fiz no fim do curso superior: concorri para Chaves e Valpaços. Regressada ao meu contexto natural, a minha predisposição para a participação cívica e política impôs-se. Diria que começou no contexto escolar e se alargou progressivamente à comunidade envolvente. A consciência de que cada cidadão pode desempenhar um importante papel no desenvolvimento da sua região, na defesa da qualidade da educação, da saúde, na promoção de hábitos de estudo, de estilos de vida saudáveis, na identificação e resolução dos problemas de cada contexto, na motivação para a participação cívica e política, na defesa da dignidade e dos direitos humanos, tornou-me mais interventiva e socialmente comprometida. Interagi com os meus concidadãos e com diversas instituições do concelho e da região, colaborando, servindo, e foi assim que começou a minha atividade política. Fiz-me militante do Partido Social Democrata e aceitei o desafio de integrar a lista de candidatos à Assembleia Municipal de Chaves em 2009 e à Assembleia da República em 2011. Certamente a lei da paridade foi responsável pela entrada de mais mulheres na vida política, por imposição das quotas mínimas. É certo que nalgumas situações já não se fica pelas quotas mínimas, mas ainda estamos longe da igualdade. Na política, uma mulher tem de trabalhar muito mais do que um homem para ter o reconhecimento. Obviamente tem havido uma alteração de paradigma em Trás-os-Montes! Mas estas mudanças levam o seu tempo e vão a par com as mudanças de mentalidades de homens e mulheres, na região e no país. Senão vejamos: na história da nossa democracia de cerca de 40 anos, quantas mulheres ocuparam lugares preponderantes na vida política nacional e concelhia? E quantas foram primeira escolha? Curiosamente nunca esteve uma mulher na Presidência da República e só na última legislatura tivemos uma mulher como segunda figura do Estado, presidindo à Assembleia da República, e não foi primeira escolha. Hoje, os caminhos para as mulheres na política estão mais abertos mas ainda são mais difíceis de trilhar do que para os homens. A proteção da lei, o impacto dos meios de comunicação social, o aumento assinalável das qualificações ou habilitações literárias, a liberdade e livre-arbítrio de que as mulheres hoje não abdicam abrem mais caminhos mas não fomos ainda, na minha opinião, capazes de assegurar a igualdade de oportunidades e de aferição do mérito.
Apesar disso, temos de reconhecer que as conquistas a este nível têm sido muito grandes e absolutamente irreversíveis. O mundo da minha infância em que os homens assumiam o monopólio e as mulheres eram excluídas ou se auto-excluíam da política não voltará, porque as mulheres jamais o permitirão. E é esta uma das mensagens que quero deixar a quem nos ler. A política não pode continuar a ser um palco da luta dos sexos pelo protagonismo! Homens e mulheres trazem diferentes sensibilidades, diferentes olhares e formas de estar na política, não necessariamente incompatíveis mas complementares. E esta complementaridade exige tolerância e respeito mútuo, igualdade de oportunidades de mostrar do que se é capaz e liberdade para fazer diferente. É preciso ultrapassar estas dicotomias sem sentido e perceber que mais importante do que o sexo do político é a sua índole, a sua capacidade de entrega à causa pública, a sua competência e probidade e o respeito que os seus concidadãos lhe merecem. Mas só conseguimos atingir este patamar se olharmos e avaliarmos de igual forma, sem preconceitos, homens e mulheres por aquilo que, efetivamente, fazem ou não fazem. Por fim, o apelo a todos os Transmontanos de que a distância dos centros de decisão não seja motivo para os afastar da política mas antes estímulo para lá chegar e para defender e servir a região e o país. Porque a política é serviço, é disponibilidade constante e humildade, na certeza de que, por muito que se faça, muito haverá sempre para fazer.
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Manuela Tender nasceu em Barreiros (Valpaços). Em 2011 foi a única mulher a ser eleita pelo círculo de Vila Real. O cenário repetiu-se em 2015. Atualmente é deputada à Assembleia da República. A convite da INDIEROR, escreve sobre o seu interesse pela política e sobre as eventuais alterações de um paradigma dominante em Trás-os-Montes.
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