Para além da Curva da Estrada


Por: Fernando Alves


Quando começámos a desmontar a “tenda de campanha” da rádio, no fim da emissão nocturna da TSF, na Casa da Ponte, sobre o Tâmega, comecei a sentir saudades do ror de amigos e das coisas tácteis com que eles haviam saciado a minha fome de histórias, bem como da formidável resposta que haviam dado à indagação dos viajantes salteadores que, durante duas horas, lhes haviam apontado microfones e porquês. Comecei a sentir saudades do Diogo Martins Martins, do Rui Morais, da Sílvia Alves, do Fernando Ribeiro (que, entretanto, pendurara a alma de um rio na parede da Adega Faustino mas mantinha sobre a mesa a máquina do olhar andarilho, para o que desse e viesse), da Ana Melo, da Otília Fernandes, da Marta da Costa, do Floripo Salvador, da anfitriã Isabel, do tocador de gaita e de todos quantos partilharam a sua condição com a indefinida tertúlia, num fio de éter mais difuso que a linha do asfalto a perder de vista. 

A propagação da luz é, como sabemos, rectilínea. Também a mítica EN 2, nos primeiros quilómetros. Seguindo para sul, essa longa recta que corta a cidade de Chaves enrosca-se como uma serpente na possibilidade de mundo que o mapa não desvenda. É essa uma das tentações da viagem. Nessas curvas nos perdemos como os lobos se perdiam no fojo. Samardã é logo adiante, mas iremos ao seu encontro como se o nosso destino fosse Samarcanda e a nossa viagem durasse mil e uma noites.



Para sabermos o que nos aguarda nesse mundo em aberto, nenhum livro basta, é preciso desatar o coração de amarras identitárias e zarpar. Disso falámos, é claro, na Casa da Ponte, e de quantos rumaram a um incerto alhures e de quantos aqui permanecem, contrariando os ventos, os trasgos e o despovoamento das estatísticas. Nessa noite, enquanto desmontávamos a tenda, lembro-me de ter olhado o espelho de água estagnada que o luar iluminava sob a ponte de Trajano e de ter povoado o pensamento com os primeiros versos de um dos “Poemas Inconjuntos” do Alberto Caeiro: “ Para além da curva da estrada, / talvez haja um poço, e talvez um castelo, / e talvez apenas a continuação da estrada. Não sei nem pergunto (…)”.






Nessa noite, ficámos a saber o essencial: por que é que os nossos anfitriões ainda não estavam “prontos para morrer”. Eles têm um ror de coisas para fazer. Assim a rádio andarilha possa fazer o caminho de regresso e chegar além da curva da estrada. Ao lugar onde eles permanecem e respondem com uma firmeza poética que parece resgatar um dos versos seguintes do já citado poema do Caeiro (“Importemo-nos apenas com o lugar onde estamos. / Há beleza bastante em estar aqui e não noutra parte qualquer”).


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É uma das vozes inconfundíveis da rádio portuguesa e já apelidado de “poeta da rádio”. Jornalista há 40 anos e intimamente ligado à fundação da TSF, mantém há mais de vinte anos uma crónica diária chamada Sinais. Vem falar-nos da sua experiência pelo interior de Portugal e como foi percorrer a Estrada Nacional nº. 2.



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