O Misticismo de Uma Terra Prometida #8

Por: Rúben Sevivas


Gente do Norte ou a História da Vila Rica (1977)


Realização: Leonel Brito
Canções por: José Mário Branco
Direcção de Fotografia: Elso Roque
Produção: Cinequanon
55 min

Gente do Norte é o testemunho da revolta! Da revolta interna e coletiva de uma população, mas também de uma terra que se viu em batalhas, guerras e constante mutação desde o princípio do seu povoamento.

Do alto de uma fraga e pelo olhar de uma câmara, Leonel Brito filma Torre de Moncorvo e as suas gentes. Os rituais, os hábitos e os costumes são explorados e desvendados pelo cineasta. Ao contrário de muitos filmes sobre um território em Trás-os-Montes, “Gente do Norte” é um exercício de compreensão e perceção das suas populações, das pessoas como indivíduos e como seres coletivos. Os rituais e as tradições deixam de ser vistas de um modo geral, pois o importante é perceber o que cada um sente.





Os belíssimos textos de Rogério Rodrigues contam as histórias de Moncorvo e relatam situações que tanto nos enriquecem culturalmente, como nos revoltam e indignam pela crua realidade em tais palavras embutida. De igual modo, as canções compostas, escritas e interpretadas por José Mário Branco são um misto de louvor à terra e de uma chamada de atenção para as condições das gentes daquele Norte.




Apesar de ser um arquivo interessantíssimo, circunscrever-me-ei ao que me parece ser relevante e o objeto central do filme: os relatos genuínos e honestos da população; a parte que diz respeito à gente.

A maneira honesta como a população relata as suas vivências e as suas experiências é excecional. Nada parece forjado – ainda que em cinema, de um modo radical, tudo o seja – nada parece encenado. A inocência da menina que relata sem pudor, nem vergonha, o porquê de viver num orfanato, é a mesma com que a senhora tocadora de viola fala sobre a vida e a morte. A primeira diz “a minha mãe é doente e o meu pai tem que andar a tratar da vida dele”, de braços cruzados, debaixo de uma árvore, enquanto completa o quadro com as restantes meninas que dividem consigo o enquadramento e a casa. A segunda afirma “eu, além do mal, sinto-me feliz porque sou sozinha. Não tenho ninguém. Se morrer hoje, morro hoje; se morrer amanhã, morro amanhã”, segurando o instrumento cujo som lhe traz a felicidade.



 A simplicidade é genuína, tal como as frases que, sem floreados e sem concordância gramatical, nos fazem tremer em tamanha franqueza. Mas estas são as gentes que nenhuma outra terra conhece. Em 1977, os retornados (palavra feia!) haviam regressado às suas origens e o seu sentimento é frio, é desolador e é excruciante. 

Sentados num pequeno muro, um grupo de jovens, vestindo roupas da “moda” e fumando cigarros, falam de coração na mão sobre o que é regressar a Portugal. As condições são deploráveis: não conseguem tomar um banho decentemente; não há casas de banho; o frio entra por todos os cantos das casas; faz frio e nem eletricidade há para ligar um aquecedor.



Há quem se arrisque a dizer que é um choque. Que a descolonização foi um processo, acima de tudo, psicológico. Já não se sentem aceites. As mentalidades são diferentes. Eles são diferentes. A rotina não os satisfaz. Até os estudos correm mal, não é como dantes – “Vocês sabem, pá, que aqui as condições são um bocado precárias. Um individuo nem tem luz em casa, pá, quer estudar, pá, tem de ser; tem de estar ali com os olhos à luz do candeeiro, pá, sofre um bocado. Foi um choque. Quer dizer, não dá o rendimento que devia dar. Que dava lá”.

São inúmeros os relatos que revoltam. São inúmeros os relatos que nos fazem dizer basta. São inúmeros os relatos que nos fazem perceber que, apesar de tudo estar diferente, o sentimento de revolta é o mesmo. Se deixar a seguinte frase terminar o artigo, dizendo que é de um jovem de Moncorvo em 1977 ou de um jovem de Chaves em 2016, será igual:



"É triste! Um gajo não chora porque não quer ver lágrimas a correr. Pá! Mas sente. Sente cá por dentro e, às vezes, tem um grito de revolta a dar, mas ele não é ouvido. E um gajo continua calado”.







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