Ulmus #10

Por: Herculano Pombo


No largo do meu vizinho Luís, havia um negrilho.

Já foi mais acolhedor de gentes, este largo – também os outros, direis vós, pois sim, vos asseguro eu, que a tantos recordo, sombreados de frescura e alegrados de passaredo - mas é neste, o principal, em que fixo agora a teia dos pensamentos.
Nem todos podeis estar lembrados, à parte os de mais idade, já se vê, dos dias em que o velho negrilho punha uma altiva nota de nobreza e eternidade em frente do antigo Hospital, onde sarandeavam atarefadas batas brancas, que tanto ajudavam a botar ao mundo a muita canalha que as mulheres então pariam, como cerravam pela derradeira vez os olhos aos que a vida resolvera substituir neste vale de lágrimas e trabalhos. Tinha até uma cercadura em ferro forjado, aquela velha árvore, como é costume colocar de roda dos monumentos, para que se soubesse que a sua copa de folhas, grande como só a das árvores grandes, costumava resgatar ao vento dos séculos as lembranças, que depois sussurrava aos ouvidos atentos dos muitos passantes que à sua sombra se acolhiam.

Porém, o tempo, que é coisa que não existe, mas que nós persistimos em medir e adorar, como deus inexorável e impiedoso, entendeu pôr fim à vida longa daquele ulmeiro, que já não sabia a idade. E vieram sobre ele as serras, os machados e as picaretas, a coberto de um despacho administrativo, fórmula menos digna de sentenciar à morte quem apenas cometia o crime de estorvar o devaneio urbanístico de um decisor, mais afeiçoado à aridez estéril das lajes bujardadas do que aos paradigmas vivos da ciência de Brotero.

Sabemos todos que, quem é grande em vida, também costuma mostrar grandeza na morte, mesmo a que é feita da mais cruel impiedade – assim que as suas raízes começaram a ser desentranhadas da terra que lhe dera vida toda a vida, jorraram delas moedas às centenas, denários e sestércios, cunhadas com as efígies desgastadas dos romanos imperiais, que as tinham feito extrair das escuras minas de Jales ou das Freitas, ensopadas em sangue e suor lamentoso de escravos, para que depois fossem acumuladas avaramente, esquecidas durante milénios, e acabassem a despertar a cobiça basbaque de um grupo excursionista de minhotos que por ali passeava, talvez em busca de memórias de um tal Luís, meu vizinho, que escrevera versos sobre uma aventura nos mares nunca dantes navegados, e que agora emprestava a glória do nome àquela praça, sem que ninguém arriscasse garantir que também ele poderia ter brincado aos soldados, ou sonetado paixão a uma pastora de Laza, à sombra daquele negrilho… Ou, quem sabe, somente ali trazidos pelas voltas do acaso, a indagarem com a Maria Landainas velhas bisbilhotices sobre os sete filhos que a Maria Mantela mandou botar a afogar no fundão da presa do Agapito, e que o frontão da Misericórdia mostra, em esculpido friso, agradecidos à providência, de redor dela… Ou ali estariam, apenas seguindo um roteiro singelo e óbvio, entre as ruínas desgloriosas de um castelo e as fontes fervilhantes das caldas, onde se curavam reumáticos e se depenavam galinhas…. Atestaram os bolsos de moedas, cada qual o mais que pôde, e lá partiram, na carreira de aluguer, de regresso às leiras minhotas, com a ilusão de que estavam ricos…

Pouco tempo depois, outra vez o tempo, que nada é, mas tudo resolve, veio a Ophiostoma novo-ulmi, grafiose dos olmos, e acabou por matar os negrilhos todos, oferecendo uma oportunidade desculpante ao malfadado despacho autárquico – “se não tivesse sido cortado e arrancado, teria morrido da doença…”

É assim a pequena história dos povos, sempre a justificar os erros e a reconstruir os factos. 


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