No largo do meu
vizinho Luís, havia um negrilho.
Já foi mais
acolhedor de gentes, este largo – também os outros, direis vós, pois sim, vos
asseguro eu, que a tantos recordo, sombreados de frescura e alegrados de passaredo
- mas é neste, o principal, em que fixo agora a teia dos pensamentos.
Nem todos
podeis estar lembrados, à parte os de mais idade, já se vê, dos dias em que o
velho negrilho punha uma altiva nota de nobreza e eternidade em frente do
antigo Hospital, onde sarandeavam atarefadas batas brancas, que tanto ajudavam
a botar ao mundo a muita canalha que as mulheres então pariam, como cerravam
pela derradeira vez os olhos aos que a vida resolvera substituir neste vale de
lágrimas e trabalhos. Tinha até uma cercadura em ferro forjado, aquela velha
árvore, como é costume colocar de roda dos monumentos, para que se soubesse que
a sua copa de folhas, grande como só a das árvores grandes, costumava resgatar ao
vento dos séculos as lembranças, que depois sussurrava aos ouvidos atentos dos
muitos passantes que à sua sombra se acolhiam.
Porém, o tempo,
que é coisa que não existe, mas que nós persistimos em medir e adorar, como deus
inexorável e impiedoso, entendeu pôr fim à vida longa daquele ulmeiro, que já
não sabia a idade. E vieram sobre ele as serras, os machados e as picaretas, a
coberto de um despacho administrativo, fórmula menos digna de sentenciar à
morte quem apenas cometia o crime de estorvar o devaneio urbanístico de um
decisor, mais afeiçoado à aridez estéril das lajes bujardadas do que aos
paradigmas vivos da ciência de Brotero.
Sabemos todos
que, quem é grande em vida, também costuma mostrar grandeza na morte, mesmo a
que é feita da mais cruel impiedade – assim que as suas raízes começaram a ser
desentranhadas da terra que lhe dera vida toda a vida, jorraram delas moedas às
centenas, denários e sestércios, cunhadas com as efígies desgastadas dos
romanos imperiais, que as tinham feito extrair das escuras minas de Jales ou
das Freitas, ensopadas em sangue e suor lamentoso de escravos, para que depois
fossem acumuladas avaramente, esquecidas durante milénios, e acabassem a
despertar a cobiça basbaque de um grupo excursionista de minhotos que por ali
passeava, talvez em busca de memórias de um tal Luís, meu vizinho, que
escrevera versos sobre uma aventura nos mares nunca dantes navegados, e que
agora emprestava a glória do nome àquela praça, sem que ninguém arriscasse
garantir que também ele poderia ter brincado aos soldados, ou sonetado paixão a
uma pastora de Laza, à sombra daquele negrilho… Ou, quem sabe, somente ali
trazidos pelas voltas do acaso, a indagarem com a Maria Landainas velhas bisbilhotices
sobre os sete filhos que a Maria Mantela mandou botar a afogar no fundão da
presa do Agapito, e que o frontão da Misericórdia mostra, em esculpido friso, agradecidos
à providência, de redor dela… Ou ali estariam, apenas seguindo um roteiro singelo
e óbvio, entre as ruínas desgloriosas de um castelo e as fontes fervilhantes
das caldas, onde se curavam reumáticos e se depenavam galinhas…. Atestaram os
bolsos de moedas, cada qual o mais que pôde, e lá partiram, na carreira de
aluguer, de regresso às leiras minhotas, com a ilusão de que estavam ricos…
Pouco tempo
depois, outra vez o tempo, que nada é, mas tudo resolve, veio a Ophiostoma novo-ulmi, grafiose dos
olmos, e acabou por matar os
negrilhos todos, oferecendo uma oportunidade desculpante ao malfadado despacho
autárquico – “se não tivesse sido cortado e arrancado, teria morrido da
doença…”
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