O Misticismo de Uma Terra Prometida #2

Por: Rúben Sevivas

Acto da Primavera, Manoel de Oliveira, 1963
 – 94min
Realização, Produção, Fotografia, Montagem e Som – Manoel Oliveira
Argumento – segundo o Auto de Paixão de Francisco Vaz de Guimarães
Intérpretes – Nicolau Nunes da Silva (Cristo), Ermelinda Pires (Nossa Senhora), Maria Madalena (Madalena), Amélia Chaves (Verónica), Luís de Sousa (Acusador), Francisco Luís (Pilatos), Renato Palhares (Caifás), Germano Carneiro (Judas), José Fonseca (Espião), Justiniano Alves (Herodes), João Miranda (S. Pedro), João Luís (S. João), Manuel Criado (Diabo), Manoel Oliveira (Narrador) e o povo de Curalha-Chaves.
Local – Curalha - Chaves




Falar do Acto da Primavera e, principalmente, de Manoel de Oliveira é uma tarefa muito ingrata em tão poucas palavras. Tendo em conta, também, que se trata de um dos meus filmes favoritos e um dos realizadores que mais prezo.
Acto da Primavera é um dos filmes mais importantes, dos mais estudados da filmografia nacional e, juntamente com Os Verdes Anos de Paulo Rocha, marca a viragem para uma nova forma de se fazer e pensar cinema em Portugal.
Manoel de Oliveira, com 106 anos de vida e 84 de carreira como cineasta, é o realizador mais velho do mundo ainda em atividade. Contudo, não é aí que reside a sua importância, nem a sua genialidade. O seu trabalho, a sua persistência, a sua jovialidade e o seu dinamismo refletem-se nas suas obras constantemente originais e desafiantes.



Todos os anos, pela altura das celebrações Cristãs da Quaresma e da Páscoa, os habitantes da aldeia de Curalha, a poucos quilómetros da cidade de Chaves, levam a cena o Auto da Paixão de Cristo.
Foi esta prática popular que chamou à atenção de Manoel de Oliveira e o inspirou a fazer um filme. Ora, é exatamente neste momento que preciso de distanciar o Auto, encenado pelo povo, da representação do mesmo feita por Oliveira. O filme não é uma reprodução da encenação popular do Auto da Paixão, nem se limita a ser o registo da sua feitura. O Acto da Primavera é a extrapolação desse Auto a objeto cinematográfico. E mais. Muito mais!


Nos primeiros 10 minutos de filme, saltamos por diversas imagens e contextos: desde a aldeia com os lavradores, enquanto se ouvem, em voz off, passagens bíblicas; desde a leitura da notícia de uma viagem à Lua até à preparação do Auto; passando ainda pela chegada de gente claramente urbana que repara na encenação, até à própria equipa de filmagens e ao início do Auto em si.
Deste modo, principalmente com a exposição do material, processo e equipa de filmagem, Oliveira desmente a encenação do Auto. O que o espectador vê é a “cinematografização” do Auto, ou seja, o espectador já sabe que foi o povo de Curalha a fazer o Auto; já sabe que são gentes da terra e não atores profissionais; já sabe que existem espectadores e sabe, também, que o espetáculo vai começar e vai ser filmado. Contudo, a partir daqui, o Auto pertence ao realizador que, dispondo dos artifícios e especificidades do cinema, abandona a procura pelo tradicional, decompondo e desmonumentalizando a representação do Auto como encenação teatral e prática cultural e popular. Oliveira transforma e eleva o Auto a obra exclusivamente cinematográfica.



Acto da Primavera é um filme que não grita, mas sussurra. Devo lembrar que foi filmado entre 1961 (inicio da guerra colonial) e 1962; estreando em 1963. A ditadura que se fazia sentir em Portugal controlava a produção cinematográfica e até produzia e incentivava a prática do cinema, contudo, sob o cunho pesado da censura.
Como Alves Costa disse: “Oliveira [com o Acto da Primavera] ousava dizer, por subtis linhas travessas, o que ninguém, entre nós, ousara dizer por linhas tortas ou direitas...”. Isto é, Oliveira estreia subtilmente um filme sobre religião e sobre “uma comunidade que, para além das fainas e dos ritmos quotidianos, se transfigura em seus rituais ingénuos mas sinceros”, contudo, aproveita toda a mensagem do Auto da Paixão para fazer o espectador pensar nas suas ações e no que é e tem sido a humanidade.

Jesus morreu pelos pecados do homem. Mas terá sido essa morte em vão? Continuaremos, como humanos, a pensar na morte de alguns como consequência por um bem maior? Será o mundo, hoje, um lugar efetivamente melhor?
Tudo isto, e mais, nos passa pela cabeça aquando do visionamento do final do Acto da Primavera. Uma das melhores metáforas e, permitam-me a expressão, bofetadas cinematográficas da historia do cinema. É impossível ficar indiferente a tal visionamento.
Não quero desvendar o segredo do filme; não me vou alongar sobre a montagem que encerra o filme e transparece a intenção do realizador de fazer o espectador questionar-se sobre o poder e a desigualdade, por exemplo. Gostaria de pedir, contudo, que vissem o Acto da Primavera. Podem passar partes do Auto à frente. Eu não me incomodo! – afinal quase todos conhecemos a estória da Paixão de Cristo – ou seja, veem mais ou menos 10 minutos de filme, o que quiserem do Auto e o final.




Manoel de Oliveira consegue, com o Acto da Primavera, passar de um contexto exclusiva e tipicamente português, para uma questão de dimensão global: a Humanidade e/ou desumanidade (se é que o termo existe separadamente do primeiro).
Na Primavera estamos sempre à espera de novos despertares, neste acto não é diferente!




“condeno aquilo que simula a própria realidade e que induz o espectador a assistir a um espetáculo que o envolve como se fosse a própria realidade, quando não é! Filmar é constituir uma realidade cinematográfica que por sua vez representa uma outra realidade [...]; o que aconteceu é aquilo que lembramos e que cada um de nós viu de pontos de vista diferentes.”
Manoel de Oliveira










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