O Misticismo de Uma Terra Prometida #3


Por: Rúben Sevivas






11 Burros Caem No Estômago Vazio , Tiago Pereira , 2006
28 min
Realização e Som: Tiago Pereira
Animação: Manuel Gandra
Imagem: Nuno Martins II; Tiago Pereira; Raquel Castro
Mistura de Som: Rodrigo Costa
Produção: AEPGA
Produtor: Nuno Martins II; Miguel Nóvoa
Local: aproximadamente 30 aldeias do planalto mirandês, entre 2004 e 2006



Durante o fim de semana de 8, 9 e 10 de Maio, decorreu, pela primeira vez, a mostra de cinema À RAIA! - projeto organizado pelo Cineclube de Chaves.
Na programação do mesmo fez parte a curta-metragem de Tiago Pereira 11 Burros Caem No Estomago Vazio e, apesar de só constar na planificação dos artigos O Misticismo de Uma Terra Prometida mais para a frente, pareceu-me oportuno abordar a sua importância e pertinência no panorama do cinema documental português, já nesta edição.
Espero, todavia, não me precipitar; pois abordarei o filme como objeto de rutura, que me atrevo a dizer necessária, para uma nova visão e forma de filmar o Nordeste Transmontano. Deste modo, é preciso entender-se que falarei, mais à frente, de filmes que retrocedem neste ponto de vista, contudo, tal não invalida a sua relevância e interesse fílmico.

11 Burros Caem no Estomago Vazio é um filme que recolhe património imaterial de vários intervenientes do planalto mirandês. Tal património é tradição oral, seja em forma de música ou em forma de estória. As estórias são sobre burros e sobre pessoas, as músicas não têm seguimento temático, mas encaixam-se perfeitamente na narrativa. Um filme construído à volta de saberes orais, comuns entre os intervenientes que, em jeito de arquivo e, atrevo-me, companheirismo por parte do realizador, vão ensinando o que os seus antepassados um dia lhes ensinaram também.

Tiago Pereira é um realizador e visualista de mérito reconhecido, mentor e coordenador de “A Música Portuguesa A Gostar Dela Própria” e da série documental da RTP2 “O Povo Que Ainda Canta”. A sua obra é de cariz transdisciplinar e remete para a cultura imaterial como a música, os rituais e as performances que, através das diferentes intervenções de Tiago, é desconstruída para dar lugar a algo novo.

11 Burros Caem No Estômago Vazio não escapa a essa inovação e espelha intenções narrativas e formais distintas do que se costumava fazer no cinema dito etnográfico, em Portugal. Premiada no DocLisboa de 2006, é uma obra que desmistifica a imagem de Trás-Os-Montes e das suas gentes (dada até então pelo cinema).




Trás-Os-Montes, para o cinema, sempre foi um lugar místico, isolado, próprio, que acarreta a ancestralidade mais popular e tradicional (o que terá influenciado o titulo destes artigos). O olhar sobre Trás-Os-Montes é, frequentemente, melancólico e nostálgico. Quase como uma imagem inacessível que se quer preservar dessa forma.
Recorrendo a uma montagem ritmada e rápida, mas sempre virtuosa, o filme adquire um valor formal distinto do que estamos habituados no cinema português. Esse tratamento estrutural é divertido, dinâmico e, em algumas circunstâncias, provocador. Não existe aqui um regresso ao passado ou uma evocação por tempos ancestrais. Existe, sim, um enaltecer do viver no interior, do saber popular e da tradição que de boca em boca se preserva. Tiago Pereira usa as estórias dos burros, as histórias dos intervenientes e as músicas populares de modo a construir uma narrativa própria que cativa tanto o espetador mais distraído como o cinéfilo asserido.


Em 11 Burros Caem No Estômago Vazio ser do interior, ser idoso ou ter menos estudos, não é sinonimo de menor valor imaterial. Tudo é cultura e tudo é verdade. São verdade os risos, os gestos, as palavras, as emoções, as pessoas; do mesmo modo que a sua forma de vida é tão legítima e verdadeira quanto qualquer outra. A presença do realizador em plano revela isso mesmo, uma nivelação de importância entre todos: realizador e objeto a ser filmado estão no mesmo patamar.





Já vi o filme algumas vezes e, confesso, vejo-o sempre com prazer e satisfação, rio-me muito com os intervenientes. E é precisamente com este facto que gostaria de terminar: de todas as vezes que vi o filme, ri-me com as pessoas; não me ri das pessoas.



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