Era uma bebé de colo, levada pelos meus
pais, na minha primeira viagem "à terra".
Os jovens Antero e Eugénia, casados ainda
nem dois anos antes, iriam assim dar a conhecer a sua primogénita a toda a
família. A de Angeja primeiro, porque era a primeira paragem após a saída de
Lisboa, e a de Filhagosa, a que demorava mais a alcançar, mas que se podia
abraçar após um longo e extenuante dia de viagem. Outros tempos, de um país com
lentas ligações rodoviárias e ferroviárias.
A terra do meu pai é uma pequena aldeia no
coração da serra da Padrela. Concelho de Vila Pouca de Aguiar. Distrito de Vila
Real.
Uma aldeia que mudou com os anos,
sobretudo com as casas construídas pelos que emigraram e que entretanto
regressaram. De raiz, as tradicionais casas da aldeia eram feitas de xisto, com
paredes grossas, verdadeiras fortalezas aquecidas pelas vacas que eram
guardadas na loja, sob os nossos pés.
É assim, ainda hoje, a casa da minha tia
Alice, irmã mais velha do meu pai. Transmontana, rija. Conserva um sorriso de
gaiata, apesar dos seus 93 anos.
A sua casa de pedra foi a que, tantas
vezes, nos deu a cama, a mesa e os bons momentos em família.
Não tenho, como é natural, recordações
dessa minha primeira viagem à Filhagosa, mas tenho de outros anos, na infância
e adolescência.
Lembro-me muito bem de não haver
electricidade. As noites de convívio eram feitas sob a luz difusa de um
candeeiro a petróleo e, anos mais tarde, de um candeeiro a gás, potentíssimo,
que iluminava todos os recantos.
Lembro-me bem que havia um único telefone
na aldeia, que ficava, precisamente, na casa da minha tia Alice. Era o telefone
comunitário a que todos recorriam e a que todos eram chamados.
Lembro-me muito bem da cozinha da minha
tia Alice. Era a primeira divisão à esquerda, logo ao cimo das escadas, também
elas feitas de pedra.
Na zona do lume, sobre o chão de pedra,
colocavam-se os tarolos de madeira, que ardiam sob as panelas de ferro de três
pés, onde se cozinhava a sopa mais deliciosa de sempre, com umas batatas, ainda
com o cheiro da terra, umas folhas de couve, um enchido caseiro e, ingrediente
fundamental, a água que íamos buscar à fonte, e que corria directamente da
nascente, de uma frescura e pureza inigualáveis. Um sabor que hoje é difícil de
alcançar.
De sabores simples se fazem as minhas
memórias de conforto, dos tempos passados na Filhagosa. Fosse directamente da
panela, ou directamente das árvores, com as deliciosas cerejas, vermelhas,
gordas, doces. Ou os cachos de uva morangueira, de um frutado intenso. Tudo
tinha outro sabor.
Não esqueço também as experiências, mais
ou menos aventureiras, por terrenos baldios e pela serra verdejante, onde me
banhava, com os meus primos, em riachos de água gelada, que nos refrescavam do
calor tórrido dos verões transmontanos de então.
Eram dias felizes e despreocupados.
Foi uma infância saudável. Com estas boas
memórias, mas também a memória, marcante, do último adeus à minha avó
"Marquinhas", a única pessoa de família, nascida no século XIX, que
ainda conheci em vida. Lembro-me da sua doçura e carinho enorme com os netos,
tantos, filhos dos seus 9 filhos. Ou da devoção que tinha por Nossa Senhora da
Conceição. Coincidência ou destino marcado, acabaria por partir, dormindo, na
noite de 7 para 8 de Dezembro, descendo o seu corpo à terra no dia da
"sua" santa.
Mas deixem-me voltar a Agosto de 1968.
Tinha eu 9 meses.
Na minha primeira viagem, no primeiro
Verão fora de casa, dificilmente os meus pais poderiam imaginar que seria
na Filhagosa que eu começaria a andar.
Ficou a foto para memória futura.
Ficou, sobretudo, o registo, a preto e
branco, da alegria de uma bebé, que bate palminhas, na excitação dos
primeiros passos. Com os pés na terra. Firme. De Trás-os-Montes.
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