Agosto de 1968

Por: Clara de Sousa



Era uma bebé de colo, levada pelos meus pais, na minha primeira viagem "à terra". 
Os jovens Antero e Eugénia, casados ainda nem dois anos antes, iriam assim dar a conhecer a sua primogénita a toda a família. A de Angeja primeiro, porque era a primeira paragem após a saída de Lisboa, e a de Filhagosa, a que demorava mais a alcançar, mas que se podia abraçar após um longo e extenuante dia de viagem. Outros tempos, de um país com lentas ligações rodoviárias e ferroviárias.


A terra do meu pai é uma pequena aldeia no coração da serra da Padrela. Concelho de Vila Pouca de Aguiar. Distrito de Vila Real. 
Uma aldeia que mudou com os anos, sobretudo com as casas construídas pelos que emigraram e que entretanto regressaram. De raiz, as tradicionais casas da aldeia eram feitas de xisto, com paredes grossas, verdadeiras fortalezas aquecidas pelas vacas que eram guardadas na loja, sob os nossos pés. 
É assim, ainda hoje, a casa da minha tia Alice, irmã mais velha do meu pai. Transmontana, rija. Conserva um sorriso de gaiata, apesar dos seus 93 anos. 
A sua casa de pedra foi a que, tantas vezes, nos deu a cama, a mesa e os bons momentos em família.
Não tenho, como é natural, recordações dessa minha primeira viagem à Filhagosa, mas tenho de outros anos, na infância e adolescência. 
Lembro-me muito bem de não haver electricidade. As noites de convívio eram feitas sob a luz difusa de um candeeiro a petróleo e, anos mais tarde, de um candeeiro a gás, potentíssimo, que iluminava todos os recantos.

Lembro-me bem que havia um único telefone na aldeia, que ficava, precisamente, na casa da minha tia Alice. Era o telefone comunitário a que todos recorriam e a que todos eram chamados.

Lembro-me muito bem da cozinha da minha tia Alice. Era a primeira divisão à esquerda, logo ao cimo das escadas, também elas feitas de pedra.
Na zona do lume, sobre o chão de pedra, colocavam-se os tarolos de madeira, que ardiam sob as panelas de ferro de três pés, onde se cozinhava a sopa mais deliciosa de sempre, com umas batatas, ainda com o cheiro da terra, umas folhas de couve, um enchido caseiro e, ingrediente fundamental, a água que íamos buscar à fonte, e que corria directamente da nascente, de uma frescura e pureza inigualáveis. Um sabor que hoje é difícil de alcançar.
De sabores simples se fazem as minhas memórias de conforto, dos tempos passados na Filhagosa. Fosse directamente da panela, ou directamente das árvores, com as deliciosas cerejas, vermelhas, gordas, doces. Ou os cachos de uva morangueira, de um frutado intenso. Tudo tinha outro sabor.

Não esqueço também as experiências, mais ou menos aventureiras, por terrenos baldios e pela serra verdejante, onde me banhava, com os meus primos, em riachos de água gelada, que nos refrescavam do calor tórrido dos verões transmontanos de então.
Eram dias felizes e despreocupados.
Foi uma infância saudável. Com estas boas memórias, mas também a memória, marcante, do último adeus à minha avó "Marquinhas", a única pessoa de família, nascida no século XIX, que ainda conheci em vida. Lembro-me da sua doçura e carinho enorme com os netos, tantos, filhos dos seus 9 filhos. Ou da devoção que tinha por Nossa Senhora da Conceição. Coincidência ou destino marcado, acabaria por partir, dormindo, na noite de 7 para 8 de Dezembro, descendo o seu corpo à terra no dia da "sua" santa.



Mas deixem-me voltar a Agosto de 1968.
Tinha eu 9 meses. 
Na minha primeira viagem, no primeiro Verão fora de casa, dificilmente os meus pais poderiam imaginar que seria na Filhagosa que eu começaria a andar.
Ficou a foto para memória futura. 
Ficou, sobretudo, o registo, a preto e branco, da alegria de uma bebé, que bate palminhas, na excitação dos primeiros passos. Com os pés na terra. Firme. De Trás-os-Montes.








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