Entre Aspas #4


Por: Manuela Rainho

Neste novo número da revista, vou falar-lhe daqueles aspectos que me parecem mais pertinentes relativamente à obra de Manuel António Araújo. Do que escreveu, li “É Tão Cruel Ter Memória!”, “A Cidade Do Patriarca”, “O Rapaz Que Lia Rimbaud”, “A Aldeia Das Mulheres” e “As Contrabandistas”. Em todas as narrativas me deparei com pormenores de cariz cultural e social que remetem o escritor para uma realidade social específica: a identidade transmontana. 

Se essa componente sociocultural me parece ser de grande importância, há outros aspectos que me entusiasmam e me levam a recomendar a leitura dos livros de Manuel Araújo. Como o espaço de que disponho é limitado, seleccionei dois deles que considero imprescindíveis: a forma como o escritor aborda o universo das personagens e a «voz» do romancista subentendida na voz narrativa.

«Na banheira a água subia… a editora recusara-me o livro, a minha mulher insultara-me e acabar de saber que fazia amor com Ricardo. Três acontecimentos simultâneos e suficientes para um homem se matar.»
pp.22 in É tão Cruel ter Memória!



«A custo abriu um livrinho imundo, com o título desbotado e ilegível, e leu com aqueles olhos desbotados, ruínas, ruínas de outro corpo do rapaz que me levava para o quarto da Antero de Quental…» 
pp.126 in O Rapaz que lia Rimbaud 

«Caminhar sozinho pelas ruas, ir aos patos, voltar pelos caminhos mais desertos, falar sozinho consigo, comas personagens dos seus textos, arbitrar conflitos entre elas, Miguel era quase feliz, à parte o percalço com Carolina.» 
pp. 67 in A Cidade do Patriarca

Se nas obras iniciais as personagens masculinas usufruem de algum protagonismo apesar de serem frequentemente apresentadas como seres aparentemente comuns, conturbados por um percurso de vida que se vai desconstruindo conforme o romance avança, as personagens femininas são essencialmente seres fortes e pragmáticos, de personalidade vincada. Assim, Lívia, ainda adolescente, no romance “As Contrabandistas” refere, «Eu acho que tenho um papel no Mundo, a sério, acho que tenho que cumprir um desígnio. Eu fiquei muito esclarecida sobre o meu papel quando falei no primeiro dia com a mulher dele; (…) Eu adoro fazer com carinho, ser meiga, mas com aquele velho, aquele comedor de crianças, fico histérica, se me visses nua com ele nem me reconhecerias, juro-te.» pp.90.

Já o segundo aspecto, a «voz» do escritor por trás da do narrador ou da personagem, é uma realidade evidente. Por isso, seleccionei alguns excertos dos vários romances onde autor e narrador coincidem: «Não diga tolices. A metáfora só funciona se o objecto com que há identificação for bem conhecido, a extensão e a eficácia da metáfora têm a ver com isso.» in A Aldeia das Mulheres, pp. 80; «Debruçou-se para aquelas palavras que iriam ser ditas, as últimas, talvez as palavras de ouro. São sempre de ouro as palavras dos condenados, as últimas palavras dos condenados à morte na cama da morte, caso queiram falar.»; in É tão Cruel ter Memória!, pp. 45 «Falámos muito da escrita, dos escritores e dos seus humores. “Os escritores, quando escrevem, são como as galinhas no choco. Isolam-se, comem frugalmente, bebem muita água, ou muito uísque, fumam pilhas de cigarros, e muito são intratáveis.».



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