Por: Manuela Rainho
Manuela Rainho: Como definiria Manuel Araújo enquanto pessoa de cultura e de escrita?
Manuel Araújo: Considero-me uma pessoa que
escreve por necessidade. Escrevo... Já o disse uma vez noutra entrevista,
escrevo para me equilibrar. Nunca escrevo como alguns escritores o fazem, regularmente;
escrevo com frequência e quando estou a escrever depois é com regularidade, mas
só escrevo quando tenho necessidade de equilíbrio. Para mim a escrita é um
processo catártico que me ajuda a enfrentar a vida. Há outra coisa importante
na minha escrita, e por isso escrevo, que tem a ver com as carências. A escrita
de certo modo preenche carências de toda a ordem que vou tendo. Por exemplo,
não é por acaso que as mulheres estão presentes nos meus livros. E não é por
acaso também que elas são as personagens mais importantes. Esse aspecto,
curiosamente é um bocado antagónico em relação ao modo como existo, porque as
mulheres acham-me profundamente antipático. No entanto, não é verdade. Não sou
antipático ou sou-o por ser tímido. Na minha obra, elas têm um papel muito
importante. E voltando ao começo da pergunta, defino-me como escritor de
carências.
M.R.:
Para si o que representa escrever?
M.A.: Representa principalmente isso:
criar mundos onde de algum modo gostaria de estar. Camilo disse que em todas as
obras há bocados de autobiografia; Marguerite Duras, em todas as obras tem
bocados dela; nas minhas também, porque para mim, escrever é como estar em
palco. Por exemplo, outra coisa que tenho e quem me conhece nunca diria que
tinha: gostava de ter sido actor. E como não sou actor, sou um actor comum na
vida. Escrever, para mim, é uma forma de representar e é também uma espécie de
teatro, uma forma de representação.
M.R.:
Considera-se um ser criativo? Como decorre o seu processo criativo?
M. A.: O modo como crio tem muito a ver
com a realidade. Há pouco tempo acabei um livro que ainda não tem título e que
é baseado em factos. O que lá está aconteceu de facto. A única coisa que fiz
foi ficcioná-los. Mas o processo criativo tem sempre que ver com carências; por
exemplo, vou responder-lhe pegando no livro “A Aldeia das Mulheres”. Como
surgiu esse livro? Sempre considerei as mulheres seres muito interessantes;
tive sempre vontade e imaginei que deveria ser engraçado haver uma aldeia onde
só houvesse mulheres… portanto, fui amadurecendo a ideia, fui pensando, às
vezes a ideia regressava. Um dia abri o computador e deparei com uma frase que
é justamente a frase com que abre o livro: «A
enorme varejeira guiou o padre Julião até ao cadáver». Foi uma frase que apareceu,
que era minha e que deixei lá, não sei porquê. Peguei nela, fui desenvolvendo e
apareceu “A Aldeia das Mulheres”. O meu processo criativo não é criação no
sentido literário, no sentido académico. Uma pessoa que cria porque lhe chega a
inspiração. O meu processo criativo é lento, reflexivo. Agora tem outra coisa
que talvez não permita que eu seja um grande escritor. Como é que eu escrevo?
Sento-me à mesa, por volta da meia-noite e começo a escrever. E aquilo não vem
logo. Agora escrevo no computador, mas dantes escrevia à mão. Escrevia folhas e
aquilo não estava bom. E rasgava ou se não rasgava punha de parte. Quando
começava a engrenar, quando a coisa começava a funcionar, estava cansado. Ia-me
deitar. No momento em que o processo criativo começava a chegar já estava
cansado. Ou seja, o processo criativo é uma coisa dolorosa. E sendo doloroso, eu
talvez não tenha uma resistência física muito grande, talvez nunca chegue a
escrever um grande livro porque, quando o processo acontece e demora a chegar,
é uma espécie de convocação, de amor à vida. Gasto horas a escrever coisas, a
não gostar, a parar, a fumar um cigarro, a voltar, e quando começo e sinto que
a coisa está a funcionar, sinto que estou cansado. O meu processo criativo é
muito doloroso, demora muito tempo, embora acredite na inspiração; Saramago disse
uma coisa que achei ser falsa modéstia: «um
escritor e um carpinteiro têm o mesmo problema: ambos precisam de trabalho».
Segundo ele, os livros escrevem-se se houver trabalho. Não concordo. Acredito
que seja necessário noventa por centro de trabalho mas dez por cento de
inspiração. E estes dez por cento é que distinguem os escritores. Ou eles têm
inspiração ou não. Por isso é que há gente que escreve, escreve, escreve e não
há nada de especial no que produz e há gente como por exemplo, a Duras, que num
livro de noventa e oito páginas, ganhou o prémio Goncourt. Esse momento de
inspiração não vem de repente é preciso puxá-la, mas tem que lá estar. No meu
caso, quando ela chega já estou cansado. Por vezes acontece-me escrever um
texto e quando acabo acho-o fantástico. No outro dia volto a lê-lo e acho-o
horrível. Isso angustia-me imenso. Em relação aos livros, interrogo-me
frequentemente sobre o facto de o livro ser ou não bom. O escritor Miguel Sousa
Tavares disse que escrevia a pensar no leitor. Considero isso errado. Nós
devemos escrever sem pensar em ninguém; escrever o que pensamos, escrever para
nós.
M.R.:
Pensa que existe uma crise de identidade cultural transmontana? De que forma
ela se manifesta na sua obra?
Quanto de haver identidade transmontana,
penso que há algo que trava as cidades transmontanas e o transmontano e que de
certo modo o define. Nós somos muito invejosos. Essa inveja de algum modo trava
a força criadora dos transmontanos. De resto não há nenhuma razão para não
haver identidade transmontana. Por exemplo, Torga era transmontano; Bento da
Cruz era transmontano. Mas identidade enquanto poética sólida da cultura
transmontana, penso que é quase inexistente, a não ser nestes casos isolados. Como
diz Umberto Eco, «massa transmontana» em termos culturais, não existe. Mas como
não há massa crítica, a criatividade é prejudicada. Por exemplo, um livro pode
ser muito bom, mas se for ignorado perde-se.
M.R.:
Enquanto pessoa de cultura que vive na era da globalização, de que forma ser
transmontano o condiciona e/ou integra?
M.A.: Ser transmontano, a mim, prejudica-me.
Não desgosto de ser transmontano mas isso prejudica-me muito. De certo modo sou
sinédoque daquilo que se diz sobre a província e Lisboa. Lisboa ignora a
província e eu, como escritor, sou ignorado. Vou dar-lhe exemplos vivos
práticos. Em 2001 ganhei o prémio Revelação na modalidade de Ensaio, instituído
pela Associação Portuguesa de Escritores. Esse prémio dava a publicação
automática do livro premiado na Editora Difel. Naquele ano, a secretaria de
Estado da Cultura cortou o subsídio da publicação da modalidade Ensaio. Mandei
o livro para várias editoras, dizendo que tinha sido premiado com o prémio
Revelação. Nem responderam. O livro foi publicado pela editora do Porto, Campo
das Letras, mas patrocinado pela Câmara Municipal de Chaves. Depois do livro “A
Aldeia das Mulheres” ter sido publicado, o Jornal O Público veio a minha casa e a revista Ípsilon ocupou quatro páginas com a divulgação do livro e comigo.
No ano seguinte, após a saída do livro “O Rapaz que Lia Rimbaud”, O Público voltou a fazer uma reportagem comigo. O editor
ficou pasmado porque achou que o livro ia vender imenso por causa das reportagens,
porque foram reportagens com um protagonismo de um escritor que ganhou um prémio
importante. Apesar de tudo, continuo a ser um escritor regional conhecido até
Vila Real e a partir daí ninguém me conhece. E tudo isso porque sou
transmontano, porque estou cá. Quem opta por ficar cá é claramente ostracizado.
Paga-se um preço muito alto. Portanto, gosto de ser transmontano, gosto disto;
mas estar cá, viver em Trás-os-Montes, é um estigma muito grande.
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