Entre Aspas #6


Por: Manuela Rainho

Segundo Mário Vargas Llosa, «os escritores são exorcistas dos seus próprios demónios». Pois bem, a propósito da obra de Angélica Carvalho, diria que os poetas são exorcistas dos seus próprios deuses… Quem é Angélica Carvalho? Mulher, poetisa, intensa, ousada, arquitecta das palavras e emoções.
 

A sua obra, “Eros, Futebol e Rock & Roll” é a prova cabal da tentativa de categorização que explicitei no parágrafo anterior. Comecemos precisamente pelo epíteto arquitecta das palavras e das emoções. Há na poesia de Angélica Carvalho uma plasticidade em que geometria e erotismo se encontram e o improvável e inesperado acontece: «O trapézio ilusório que me sustenta/ Apresenta o risco da incerteza da queda/» poema 2; «Estar a ti ligada/Por arcos e anéis invisíveis/ Designados amor, paixão» poema 17; «Para linhas geométricas/ Em Picasso/Estilizada nas passarelas» poema 32; «O estreito rectângulo/ De luz na janela/Faz perceber um espaço cúbico» poema 34; «todos os desenhos são possíveis/”O amor desenha uma curva/propõe uma geometria”» poema 42; « Em linha recta/Em curva/ Em espiral/ Para» poema 57. Há ainda uma síntese em que poesia e cor ocorrem de forma natural, quase instintiva. Se não vejamos: «Em que paleta procuras/As cores que emolduram/A cena dos meus dias?» poema 2. Ou a palavra que ao falar de amor remete para a pintura como se o espaço de amar fosse o espaço plasmado pela pintura ou escultura: «Como que saído do modelo de Cristo*/ Para pintura cubista//Não sei de mim nem de ti//Deus poderá observar uma tela/Picassiana» poema 18; «Desde a Vénus de Milo/ Que deliras comigo// Ora alta, ora baixa/ Mas sou eterna com Velasquez// De mamas super-abundantes/ Com Renoir//» poema 32.

Se em termos plásticos podemos falar de uma poesia marcadamente espacial, em termos rítmicos poderemos falar numa simbiose entre a palavra e a música que se harmonizam para enaltecer o erotismo do amor físico, real e palpável. Atentemos nos excertos seguintes: «Em eu violinos dedilhas/ A surreal sinfonia/Que trazes aos meus ouvidos?» poema 2; «Quando tocam para nós/ A mais bela sinfonia de amor/Amamo-nos como deuses» poema 3; «os nossos corpos/Cantam uma canção de amor/Em uníssono/ É bela// (…) Para que tens mãos de artista/Senão para tocar as teclas do meu corpo/ que o fazem vibrar» poema 5; «Envoltos/Num ritmo e musicalidade celestiais/Amamo-nos/Sobre o leito feito altar/ Como sacrifício divino» poema 18. 


Todo o poema 59 é um hino a essa harmonia que entrelaça amor erótico e música expressos através da dança. Aqui o espaço plástico da dança, seja ela qual for, e o tempo do compasso da música estão ao serviço da sedução, da paixão e do desencontro até. Vejamos então no poema, como Angélica Carvalho expressa essa identidade marcada pelas diferentes fases do amor a dois: «A forma gráfica da música e da dança/Que não se instale o fado, meu amor// “ Que neste quarto fechado/ O fado chora-se bem”**// Como símbolo do desamor, com um único perdedor/ Do tipo “estou a viver este momento e dele já tenho/saudades”**// Com o ballet não terá graça/ Desapareceres à noite num lago de qualquer floresta/ Transformado em cisne/ Para ficar a imaginar o que poderia ter sido// No tango o ciúme é a dois/Um romance segue-se a outro com igual esplendor// “Na minha casa ou na tua?/Para o rock and roll”// Mas, meu amor,/ Não gastes tanto suor nesse/Sapateado de flamenco// Já sabes nisto do amor/Tem algo de festa brava/ E ao toureiro não convém/ Vacilar ante o touro».

Esta é a minha leitura da obra “Eros, Futebol e Rock & Roll”, publicada por Angélica Carvalho. Sei da existência duma outra a sair brevemente. Outras leituras poderão ocorrer. Aquilo que é fascinante na poesia e na literatura em geral é que cada um de nós pode apropriar-se da obra do autor e mediante a sua história pessoal e secreta ler e interpretar o que o escritor muito provavelmente não quis significar.


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