Mitologia Transmontana


Por: Armando Ruivo

Trás-os-Montes foi sempre um espaço, onde as figuras de superstição e crença foram povoando, ao longo dos tempos, o imaginário da sua gente. Esta riqueza, diversidade e dispersão, por inúmeros povoados transmontanos, constituem um verdadeiro desafio para quem se interesse pela literatura tradicional e oral e escolha, como alvo, principalmente os contos “maravilhosos” ou “de encantamento”, por privilegiarem a vertente do sobrenatural.

A sua proliferação assenta sobretudo na ingenuidade e isolamento. O relevo da paisagem e povoamento concentrado, abrigando comunidades fechadas, foram factores decisivos na criação, consolidação e aceitação, através dos contos, de mitos, superstições e crenças.

As figuras do sobrenatural mais aceites são sem dúvida as fadas, o diabo, as almas penadas, as bruxas, a morte, o lobisomem, o olharapo e o trasgo, simbolizando ora o bem ora o mal, incutindo medo, mesmo com a condenação eterna ou pregando partidas. Vamos contudo abordar apenas algumas delas, de forma um pouco mais circunstanciada.

A fada, figura feminina, com o seu ar maternal, que integra o conto A menina e a madrasta, é, como acontece a maior parte das vezes, uma figura simpática, protectora e capaz de premiar. A madrasta, simbolizando o mal, causava maus tratos à menina e incumbia-a de realizar tarefas superiores às suas forças. Este mau viver despertou a atenção da fada que a recolheu e, ao fadá-la, fez com que vivesse “feliz toda a vida”. A fada, com os seus poderes sobrenaturais, praticou uma boa acção e, ao mesmo tempo, castigou a madrasta ao retirar do seu domínio a menina, uma verdadeira escrava.

De sinal contrário, temos, por exemplo, o diabo, a figura que infunde mais medo, dada a forma estereotipada como ele e o seu inferno sempre foram apresentados aos crentes pelos propagadores da fé cristã. Por isso é descrito como uma figura medonha, com feições horrendas, peludo, com cornos de chibo, garras nos membros e rabo longo e retorcido ou então disfarçado de serpente, doutros bichos ou monstro de aspecto humano e animalesco. Representa normalmente o mal. No entanto, por estranho que pareça, no conto Nossa Senhora e o Diabo, o mafarrico surge como benfeitor, tendo livrado da forca um rapaz a quem acusaram injustamente de ter roubado uma quantia de dinheiro que era dele. Um mendigo havia pressagiado a sua morte aos quinze anos e antes que isso acontecesse, resolveu ir pelo mundo. Ao passar por uma capela e, vendo que o manto gasto de Nossa Senhora, deixou dinheiro para um novo. Mas no final, depois da trama que lhe urdiu uma estalajadeira, quem o salvou foi o diabo, enquanto ela foi engolida por um buraco que se abriu na terra. Nem todos os diabos são maus e muitas vezes somos enganados pelas aparências.

Além do Inferno, o destino dos condenados, existe, no imaginário do povo, o Purgatório, onde as almas se limpam antes de entrarem no Céu. A tradição popular aceita que elas regressam ao mundo a penar, para que alguém pague, por elas, dívidas ou cumpra promessas. Esta crença, muito enraizada em Trás-os-Montes, também aceita que as almas penadas se entranham no corpo de uma pessoa viva, até que um padre ou um médium as expulse com esconjuros. Outras vezes a sua presença é denunciada por luzes, como aconteceu certa noite numa aldeia de Vinhais, conforme o conto As luzes das almas. Ao verem as luzes de noite, houve quem não se atrevesse a sair de casa, mas um mais afoito dirigiu-se às luzes, perguntando-lhe no que podia ajudá-las. Depois de cumprida a promessa as luzes desapareceram. Essa função coactiva e pedagógica talvez seja a causa de os transmontanos serem tidos como pessoas de palavra e de boas contas.

Os contos tradicionais nascem de uma fonte ou memória colectiva. Tratando-se de exercícios de memória são normalmente curtos, mas susceptíveis de transformações ou actualizações, de acordo com as versões ou perspectivas dos contadores. Um processo que garante a sua herança às novas gerações. Sem descermos à classificação mais aprofundada das funções, segundo Vladimir Propp, os contos reúnem os povos, facilitam a socialização, divertem e têm um fundo moral e didáctico, principalmente junto dos mais novos. Os contos de fadas têm uma função mais relevante junto das crianças porque as levam a acreditar num nível superior da sua existência e encorajam-nas a enfrentar com outro denodo os obstáculos que lhe vão surgindo no seu percurso vital. São razões suficientes para que se continue a preservar estas crenças imemoriais. Com a minha idade tenho a consciência de que muito já se perdeu, não só a nível dos contadores, com o fim dos serões e outros locais de reunião, mas também com a chegada da luz eléctrica e dos media aos nossos lugares mais recônditos. É urgente travar esse processo globalizante que põe em risco a identidade dos povos.

Relativamente à universalidade dos contos tradicionais, atendendo à sua origem remota, aceita-se pacificamente que os mesmos contos possam sobreviver em várias regiões do mundo, embora em versões diferentes. Facto que se confirma após a leitura de Psicanálise dos Contos de Fadas, de Bruno Bettelheim. O contacto entre povos e o domínio de uns sobre outros ajudou na sua difusão, tornando-os universais.



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