Pensamento Sobre as Palavras #9


Por: Manuel António Araújo



"Amava-a como a uma amiga inteligente, fiel, insubstituível, não como a uma amante."
O Livro do Riso e do Esquecimento, Milan Kundera


Há uns tempos, estava eu sentado num sofá de napa, numa imobiliária, à espera de ser atendido. À minha frente, em pé, dois jovens namorados, presumo eu, esperavam também. De mão dada, levemente encostados um ao outro, numa leveza incendiada. Ela usava o cabelo curto e um vestido bastante por cima do joelho, que deixava ver as pernas esguias e muito morenas, ele usava também o cabelo curto e uma barba de três dias. Não teriam mais de vinte e oito anos.

Sentado no sofá ordinário, pude imaginá-la a entrar na água e a sair da água, com o vestido, transparente, colado ao corpo, ou a enrolar-se na areia, de tanga, ou a…… quando o agente imobiliário sai do gabinete, se dirige a eles e profere a palavra assassina: - Muito boa tarde! Em que podemos ser útil ao casal?

Onde está a palavra assassina? Ora nem mais: “casal”. Regalado no sofá de napa, a ver o corpo dela a entrar, com lentidão, no mar, acordei atrozmente para um ambiente eunuco!

De dentro do gabinete continuou a chegar até mim essa palavra castradora: “O casal deseja vivenda ou apartamento?”, “O casal tem filhos?”… Tapei os ouvidos. E quando saíram do gabinete vi dois corpos fraternais e amigáveis de mão dada. As pernas esguias pareceram-me dum moreno tão casto!, o cabelo curto dava-lhe um lamentável ar de rapazinho, e a barba de três dias dele pareceu-me um sinal de baço desleixo.

São como um punhal as palavras! diz Eugénio. Um punhal castrador, direi eu. É por isso que gosto de palavras ambíguas. A ambiguidade tem a notável característica da escapatória, enquanto que as palavras sem conotação são pobres e perigosas na sua pobreza.

A um homem e a uma mulher que vivem juntos chamam um casal.

O agente imobiliário usou a palavra “casal”, uma palavra educada, pertencente à ortodoxia linguística. E sabe-se como a ortodoxia é avessa a desvios e a desinquietudes.

Se dissesse: Muito boa tarde! Em que podemos ser útil aos amantes? - violaria a ortodoxia e não me acordaria do sonho. Porque um jovem com barba, cuidadosamente, de três dias e uma jovem sensual, a roçarem-se levemente, não são um casal. São dois amantes. “Casal” remete para a harmonia do cansaço, para a ausência da ambiguidade, para a lassidão da corda.

Dois jovens numa imobiliária, tensos, cheios de pequeninas infidelidades por cumprir, não podem ser um casal.

Há palavras que nos fulminam, outras que nos motivam, outras ainda que nos salvam. Outras… e outras….. e há palavras que nos castram.



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