Da obra publicada por João Madureira podemos destacar
o ensaísta que numa vertente irónica, sarcástica mesmo, descreve até à exaustão
a sociedade em que se encontra inserido. Assim, “Crónica da Cidade de Névoa” e “O
Homem sem Memória” são dois livros que retratam a sociedade flaviense. Enquanto
o primeiro se reporta às décadas do início do século XX, o segundo remete mais
para um tempo que oscila entre as décadas de sessenta e oitenta, algures no
passado recente da nossa região.
Tanto num como no outro livro é evidente a
necessidade que o autor tem de escrutinar num processo depurativo e
testemunhal, embora pontualmente seja possível detectar alguma emoção e mesmo a
percepção de sentimentos vivenciados pelo autor no decorrer do percurso que
foram a sua infância e juventude.
«“Doem-me muito as
mãos, Rosa”, disse o guarda Ferreira. “A mim também me doem as mãos, mãe”, disse o José. “Aquecei-as mais
um pouco aqui no meu regaço”, disse a Dona Rosa. Até o João balbuciou algo
carinhoso. Nessa noite cearam como se fosse noite de Natal. Mesmo os recos na
corte se calaram e comeram a lavadura, um tentador caldo de couves, batatas e
farelo que os fez engordar para aí meio quilo. Ou mesmo mais. Passava da
meia-noite quando foram para a cama e dormiram um sono calmo e retemperador.»
in O Homem Sem Memória
Em “Crónica da Cidade de Névoa”, apesar das personagens serem ficcionais parece-nos que as mesmas
foram forjadas tendo como ponto partida experiências que o autor viveu,
oferecendo-nos um testemunho marcante do ambiente político-social da nossa
sociedade, no decorrer do século XX.
Já na segunda obra, “O Homem sem Memória”, a visão
facultada é essencialmente filtrada pelo olhar crítico e lúcido de José, a
personagem central.
«A escola
de pioneiros acabou no dia seguinte. E, por incrível que possa
parecer, não por vontade do José, mas sim pela peremptória decisão e a
ideológica audácia dos órgãos dirigentes do Partido, que tudo sabe e
tudo vêem.»
in O Homem Sem Memória
Ainda no âmbito da prosa ficcional, temos o conto «Demónios Sem Rabo» integrado na
antologia, “Contos do Sacaúntos Romasanta, o Criminal”. Este conto é
extraordinariamente interessante. O autor leva-nos para uma atmosfera
misteriosa, esotérica mesmo, onde as personagens, predominantemente rurais,
típicas da nossa região, nos vão desvendando um ambiente simultaneamente rude,
duro, árduo onde a vida era implacável. Concomitantemente, o universo obscuro
dum divino que oscila entre uma religiosidade construída no medo, na desconfiança,
na obscuridade e uma sabedoria ancestral feita de rituais com origem na noite
dos tempos e que foram adaptados pelo cristianismo medievo.
«Logo
pela madrugada, bem antes dos animais despertarem na corte, Maria Fonseca,
enxuta como é seu timbre e feitio, defumou a casa entoando a oração contra o
mau-olhado, pois o que lhe estava a acontecer só podia ser provocado por
inveja, empreendimento das almas ruins que já deviam estar a assar nas enormes
labaredas das profundas fogueiras dos infernos.»
in Demónios Sem Rabo
Há ainda uma colectânea de prosa poética onde o «eu»
do sujeito poético se transfigura e atinge uma universalidade especial,
filtrada pelas grandes temáticas universais que assombram a Humanidade: O tempo
efémero versus eternidade; o medo e a aceitação; a morte e a vida; a espera
versus a urgência. A sensação que perdura da leitura da prosa poética de João
Madureira é de identificação com o «eu» do sujeito poético: identidade em
termos humanos e éticos. Uma experiência única.
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