Entre Aspas #10

Por: Manuela Rainho

Da obra publicada por João Madureira podemos destacar o ensaísta que numa vertente irónica, sarcástica mesmo, descreve até à exaustão a sociedade em que se encontra inserido. Assim, “Crónica da Cidade de Névoa” e “O Homem sem Memória” são dois livros que retratam a sociedade flaviense. Enquanto o primeiro se reporta às décadas do início do século XX, o segundo remete mais para um tempo que oscila entre as décadas de sessenta e oitenta, algures no passado recente da nossa região.

Tanto num como no outro livro é evidente a necessidade que o autor tem de escrutinar num processo depurativo e testemunhal, embora pontualmente seja possível detectar alguma emoção e mesmo a percepção de sentimentos vivenciados pelo autor no decorrer do percurso que foram a sua infância e juventude.

«“Doem-me muito as mãos, Rosa”, disse o guarda Ferreira. “A mim também me doem as mãos, mãe”, disse o José. “Aquecei-as mais um pouco aqui no meu regaço”, disse a Dona Rosa. Até o João balbuciou algo carinhoso. Nessa noite cearam como se fosse noite de Natal. Mesmo os recos na corte se calaram e comeram a lavadura, um tentador caldo de couves, batatas e farelo que os fez engordar para aí meio quilo. Ou mesmo mais. Passava da meia-noite quando foram para a cama e dormiram um sono calmo e retemperador.» 
in O Homem Sem Memória


Em “Crónica da Cidade de Névoa”, apesar das personagens serem ficcionais parece-nos que as mesmas foram forjadas tendo como ponto partida experiências que o autor viveu, oferecendo-nos um testemunho marcante do ambiente político-social da nossa sociedade, no decorrer do século XX.
Já na segunda obra, “O Homem sem Memória”, a visão facultada é essencialmente filtrada pelo olhar crítico e lúcido de José, a personagem central.

«A escola de pioneiros acabou no dia seguinte. E, por incrível que possa parecer, não por vontade do José, mas sim pela peremptória decisão e a ideológica audácia dos órgãos dirigentes do Partido, que tudo sabe e tudo vêem.»   
in O Homem Sem Memória 


Ainda no âmbito da prosa ficcional, temos o conto «Demónios Sem Rabo» integrado na antologia, “Contos do Sacaúntos Romasanta, o Criminal”. Este conto é extraordinariamente interessante. O autor leva-nos para uma atmosfera misteriosa, esotérica mesmo, onde as personagens, predominantemente rurais, típicas da nossa região, nos vão desvendando um ambiente simultaneamente rude, duro, árduo onde a vida era implacável. Concomitantemente, o universo obscuro dum divino que oscila entre uma religiosidade construída no medo, na desconfiança, na obscuridade e uma sabedoria ancestral feita de rituais com origem na noite dos tempos e que foram adaptados pelo cristianismo medievo.

«Logo pela madrugada, bem antes dos animais despertarem na corte, Maria Fonseca, enxuta como é seu timbre e feitio, defumou a casa entoando a oração contra o mau-olhado, pois o que lhe estava a acontecer só podia ser provocado por inveja, empreendimento das almas ruins que já deviam estar a assar nas enormes labaredas das profundas fogueiras dos infernos.» 
in Demónios Sem Rabo


Há ainda uma colectânea de prosa poética onde o «eu» do sujeito poético se transfigura e atinge uma universalidade especial, filtrada pelas grandes temáticas universais que assombram a Humanidade: O tempo efémero versus eternidade; o medo e a aceitação; a morte e a vida; a espera versus a urgência. A sensação que perdura da leitura da prosa poética de João Madureira é de identificação com o «eu» do sujeito poético: identidade em termos humanos e éticos. Uma experiência única.



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