Entrevista a João Madureira #10

Por: Manuela Rainho

João Madureira nasceu no concelho de Chaves, na aldeia de Torre do Ervededo. Enquanto pessoa social, foi dirigente estudantil e associativo, teve no decorrer da sua vida activa intervenção nos mais diversos âmbitos de manifestações culturais, ligadas ao cinema, à fotografia, à rádio, ao jornalismo, às artes; como pessoa de escrita, tem vasta obra publicada em jornais e revistas, produziu e editou colectâneas poéticas, colaborou em catálogos de pintura e escultura. Em colaboração com o grupo Dólmen da Galiza, produziu e colaborou em antologias de poesia e contos; e tem várias obras publicadas em e-book, de que se destacam, O Homem sem Memória, Poesia (colectânea de prosa poética) a antologia de Contos Contos do Sacaúntos Romasanta, Criminal, que integra o seu conto DEMÓNIOS SEM RABO. Publicou ainda em 2004, Crónica Triste de Névoa, edição comemorativa do 75º Aniversário da elevação de Chaves a cidade.

Manuela Rainho: Para si, o que representa escrever?
João Madureira: Não concebo a minha vida sem ler nem escrever. Curiosamente ainda hoje de manhã me perguntei como seria a minha vida se não lesse nem escrevesse. Acho que o escritor se faz um bocadinho a partir das leituras. A primeira coisa que fazemos é ler: ler o mundo, depois ler os livros, os afectos… Mais tarde se esse caminho for feito, logicamente aparecerá a escrita. Mas a leitura é essencial, digamos assim. Foi estruturante. Posso dizer, que comecei a ler por causa dos santinhos: os missais, porque a minha mãe era muito católica e ensinou-me a ler as orações nos santinhos o que é curioso.

M.R.: Considera-se um ser crítico?
J.M.: Sim, no sentido em que quando olho para o mundo, tenho sempre uma opinião formada sobre quase tudo; sim, crítico também porque perante o mundo e perante as coisas - notícias, cultura -, perante tudo o que nos rodeia, tenho opinião própria. A meu ver, ser crítico é um pouco isso. No entanto há pessoas que julgam que sou hipercrítico.

M.R.: Penso que é sobretudo uma pessoa lúcida e tem uma ironia sarcástica de que gosto, mas não é um ser de crítica avulsa.
J.M.: Sim, não sou uma pessoa de crítica fácil.

M.R.: Depois tem a coragem de partilhar a sua visão do mundo. Isso é evidente na sua prosa. Às vezes é um bocado exaustivo na forma como trabalha a prosa, mas penso que simultaneamente é muito interessante.
J.M.: Penso que isso tem a ver com o compromisso semanal de escrever. Como escrevo todas as semanas, às vezes vejo-me e desejo-me para escolher um tema. Por isso, muitas vezes vamo-nos repetindo. No entanto, penso que o que custa a quem escreve é arranjar uma voz própria. Que reflicta não só a maneira de ver o mundo, mas também a maneira como transmite aos outros essa visão do mundo. Acho que tenho uma maneira pessoal de ver o mundo. Há pessoas que gostam, há pessoas que detestam. É a vida, é assim. Como não vivo em função do que os outros pensam de mim, faço. Caso contrário, não fazia nada. Sabes perfeitamente que é assim. Por isso, temos de arranjar uma certa independência em relação a esses factos.


M.R.: Com decorre o seu processo criativo?
J.M.: É assim: acho que não há criatividade. Pode parecer provocatório. Mas penso que há processos de misturar informação. A criatividade tem a ver com a informação que te dão. Se não tiveres acesso à informação e à cultura não há qualquer tipo de criatividade. Vês as coisas, lês e a partir daí formas o teu próprio mundo. A minha maneira de escrever tem muito a ver com isso. Portanto, sou um leitor compulsivo e da leitura chego à escrita. Tem sobretudo a ver com esse mecanismo. A criatividade é sobretudo a capacidade de misturar o que li e percepcionai do mundo. Desde jovem era leitor de Tintim, lia os santinhos e missais, lia histórias do Antigo Testamento adaptadas. Li “D. Quixote”, “O Malhadinhas”, “O Que Diz Molero?”. A minha visão do mundo constrói-se a partir daí, a minha criatividade radica aí. Gostaria de ter escrito D. Quixote. Basicamente, todo o romance sabe a D. Quixote.
M.R.: De certa forma já respondeu a esta pergunta, mas cá vai: Na sua perspectiva, o que é a criatividade?
J.M.: É trabalho. Não existe criatividade sem trabalho. Um trabalho de informação. A criatividade a existir, existe exactamente no sentido de misturar a informação e sobretudo a forma como misturas essa informação. A criatividade, em si é, algo vazio. Para se ser criativo tem de haver uma base.


M.R.: E criatividade, enquanto inspiração?
J.M.: A inspiração é trabalho. As pessoas não gostam de ouvir isto, mas é verdade. Por outro lado, sou uma pessoa obsessiva, de método, organizado. Enquanto professor, ensino o método às minhas crianças e aplico-o no meu quotidiano porque vejo que dá resultado, senão não escrevia. A escrita também é um trabalho, de graça e a seco, como se costuma dizer.

M.R.: Podemos falar de uma crise relativamente aos valores éticos e culturais transmontanos?
J.M.: Sim, podemos. O problema é que somos hoje muito urbanos, somos hoje muito iguais. Antigamente, ser transmontano era um bocadinho diferente porque, geograficamente, vivíamos num espaço mais selvagem, mais telúrico, mais confinado. Até a própria linguagem… Fui convidado a participar num evento fotográfico “Outono Fotográfico”, onde as fotografias devem ser acompanhadas por texto. Vou participar com fotografias de pessoas que ilustram profissões em vias de extinção. Ora o texto começa com a frase: «Os transmontanos estão em vias de extinção.» Exactamente por causa dessa identidade que vai desaparecendo. Quando vamos pelas nossas aldeias, constatamos precisamente isso visto que já não há gente nas aldeias. As poucas que há são pessoas de muita idade; não há crianças, não há espaços, embora ele esteja lá, mas não há forma de vida. As pessoas vieram para as cidades. Por isso, os transmontanos são os «bonitos» estrangeiros noutros sítios. Há transmontanos em Lisboa e Porto, até espalhados por essa Europa. O meu primeiro romance “Crónica da Cidade de Névoa” é de certa forma uma homenagem à minha avó. Tem a ver com usos e costumes a mesmo o linguajar das pessoas de Chaves e do nosso entorno.

M.R.: Tem também a ver com a sociedade flaviense de determinada época. Não é?
J.M.: Sim, reporta-se a meados do século XX. O romance foi pensado para o 75º aniversário da subida de Chaves de vila a cidade. O enredo da narrativa passa-se nesse tempo, depois um pouco mais tarde, anos 40, no tempo da 2ª Guerra Mundial e do volfrâmio. Depois, por volta de 68, a cidade de que já me lembro, dos tempos em que ia à aldeia e convivia com os meus. O outro romance, “O Homem sem Memória”, narra um tempo posterior: um bocadinho antes do 25 de Abril e os tempos pós revolução. Neste romance sou mais eu; por isso a personagem central tem muito a ver comigo. No entanto se estão à espera de ver o João Madureira enquanto auto-retrato, é impossível, pois não fui nem era tão rebelde como ela nem tão conservador como outras das personagens.

M.R.: De que forma o facto de ser do Norte, transmontano, o condiciona ou integra enquanto pessoa de escrita?
J.M.: Condiciona de certeza absoluta. Mas também me liberta para outras coisas, no sentido de que tenho uma identidade e a partir dela construo a minha obra. Se não fosse daqui, se não fosse filho dos meus pais, neto da minha avozinha que me criou e dava muito carinho, um tema obsessivo, que leva as pessoas a pensar que as vivências com a minha avó foram durante longos anos e não é verdade, foram meses. Mas a impressão é de tal maneira forte que perdura no tempo. Esta impressão tem a ver com a maneira de ser do transmontano. Assim, a palavra dada, o sentido da honra, da verdade, de sermos fiéis a estes valores desde que nascemos até à morte, nem é muito cultural, nem muito moderno, mas é ser transmontano. Gosto de me afirmar transmontano, por isso: primeiro sou transmontano, depois do norte e finalmente português. Isto reflecte bem o valor que dou à identidade transmontana.

M.R.: Em termos de obra, acha que essa identidade é importante?
J.M.: Também é desse impacto que resulta a minha obra. Mas liberta-me pois começo desse universo e parto para o mundo. Neste momento estou a escrever um romance que é um pouco o reflexo dessa experiência. Como ainda está no segredo dos deuses, não vou falar muito dele. Mas uma das personagens é alguém que volta para a nossa região e que vive ligado às grandes tecnologias. Trabalhando aqui tem acesso a todo o tipo de informação e tecnologias e consegue comunicar com tudo e com todos. Como é transmontano sente necessidade de regressar às origens. No entanto esse regresso não o limita relativamente a viver no mundo.

M.R.: Como definiria João Madureira, enquanto pessoa de cultura e de escrita?
J.M.: Sou uma pessoa extremamente banal e corriqueira. Não encontro em mim nenhum traço de pessoa culta. No entanto, considero-me uma pessoa de cultura; não seria eu se não tirasse fotografias, se não escrevesse, se não lesse, se não fosse ao cinema. Penso que a cultura é uma coisa complicada. Nós chegamos lá a partir da depuração, por aceder à essência, a busca da simplicidade.


M.R.: E como se considera enquanto ser cultural? Alguém que busca essa simplicidade, ou não?

J.M.: Sim, penso que sim. A escrita tem um pouco a ver com essa simplicidade, sobretudo a poesia. No entanto, em si o processo tem muito de complicado. É curioso que relativamente à prosa poética tenho um grupo de fãs no Brasil. Sobretudo mulheres maduras. Às vezes pergunto-me de que forma os meus textos lhe tocam. Mas deve ser o sentido religioso do povo brasileiro, o seu lado místico muito profundo. Não é propriamente religioso no sentido tradicional da liturgia, mas tem a ver com mística. Lobo Antunes diz que «Ama-me Deus que escreve.» Em poesia, os textos saem de tal maneira que penso que está um bocadinho para fora do que sou, da minha maneira de ser. Assumir isso como texto, nem sempre é fácil. A poesia é a linguagem dos deuses, dos logocratas. A minha poesia reflecte sobretudo o facto de ter conhecido alguns dos grandes poetas da actualidade; por exemplo, aos dezasseis anos tive a sorte de conhecer Herberto Hélder. Havia uns cadernos, chamados “Cadernos de Poesia” onde tive acesso a uma colectânea de Herberto Hélder: “Vocação Animal”. Quando li os poemas fiquei estupefacto. Só depois de conhecer Herberto Hélder é possível escrever o poema Infinito.







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