Um Doce Escondido Entre os Anjos #10


Por: Marta da Costa


Foi num dos certames do evento “Sabores de Chaves” que ficámos a par da história do casal Júlia e Fernando Borges. Por detrás do seu negócio “Licores Mais Doces” esconde-se uma pesquisa com o objetivo de enriquecer a doçaria transmontana, em especial da região de Chaves.


A doçaria ocupa um lugar especial na vida de Júlia Borges. Alentejana, o contacto com os doces desde cedo que fez parte do seu dia-a-dia; e nem o casamento com um transmontano a fez perder essa ligação. O negócio de Júlia e Fernando iniciou-se com a produção de licores "por ser uma coisa muito tradicional de norte a sul do país". No entanto, a ausência de doces conventuais na doçaria de Chaves desde cedo que intrigou Júlia Borges, levando-a à procura nas pastelarias da cidade que, habituadas a usar a massa folhada nas suas criações, poderiam ter alguma referência a este tipo de doçaria. A procura não deu resultados e parecia que toda a gente desconhecia a existência de doces conventuais. Contudo, Júlia sempre achou “muito estranho, precisamente por ser alentejana, aqui haver um convento e não haver doçaria nenhuma; todos os conventos tinham doçaria: pode dizer-se porque alguns tinham freiras que vinham de casas senhoriais e, mesmo que não viessem, os conventos tinham que dar solução às gemas, visto as claras serem necessárias para engomar os véus e os hábitos das freiras".

Doçaria no convento

O convento em questão é o Convento de Nossa Senhora da Conceição ou Convento de Nossa Senhora dos Anjos em Chaves, que funcionou entre 1685 e 1834. Albergou religiosas de S. Francisco e, mais tarde, no ano de 1717, acolheu freiras da Ordem da Imaculada Conceição. As portas encerraram definitivamente em 1892, com o falecimento da última religiosa.

A pesquisa de Júlia e Fernando continuou, até descobrirem o livro do historiador e gastrónomo Alfredo Saramago “Doçaria Conventual do Norte”, que continha uma menção à doçaria conventual transmontana, com uma parte dedicada especificamente a Chaves.
Desta forma foi possível descobrir que, dos quase 150 anos de existência como Convento, a cidade de Chaves herdou, para além do nome pelo qual é conhecida a praça onde se situa – Largo das Freiras -, algumas receitas conventuais, onde se incluir o Doce dos Anjos. Este doce é o mais carismático, quer pela feliz mistura de ingredientes, quer pelo facto de ter sido objeto de oferta por parte das religiosas em dias festivos.

Deste modo, a marca “Licores Mais Doces” decidiu recuperar este doce conventual perdido nos tempos, com o intuito de colmatar uma lacuna na doçaria da cidade de Chaves.


Um doce perdido no tempo

As pesquisas realizadas revelam que o Doce dos Anjos era bastante popular, sobretudo por ser um encontro perfeito de ingredientes, texturas e sabores característicos da doçaria conventual. Mas por que motivo estas receitas se perderam no tempo? Com a pouca informação de que dispomos, a especulação é muita. Alfredo Saramago afirma que o doce era oferecido em dias de festa, pelo que seria normal estar limitado à vida do Convento. No entanto, Júlia refere que “as freiras que vieram aqui para o Convento de Nossa Senhora da Conceição eram de famílias abastadas e tinham um nível de vida muito bom; e elas podiam ter feito a adaptação de algum doce, até da casa senhorial a que pertencessem, porque muita doçaria conventual tem origem nas casas senhoriais, pois o açúcar não era toda a gente que o tinha, só as pessoas mais abastadas”. Fernando Borges realça ainda o facto de muitas das freiras que viviam no Convento de Chaves pertencerem ao distrito de Braga “por isso é natural que haja aqui uma transferência do doce de Braga para cá”.

Sem necessidade de qualquer tipo de pesquisa, a alentejana Júlia Borges garante que “o sul do país tem mais apetência para a doçaria e, como vivi toda a minha vida no sul do país, realmente não há cidade nenhuma do Alentejo ou até do Algarve que não tenha doçaria conventual”. A pesquisa realizada em Chaves permitiu-lhe descobrir inclusive alguns doces fora do vulgar – “há um de uvas que elas faziam, que eram envolvidas em açúcar, do tipo marron glacé mas feito com uvas” –, pelo que Júlia Borges acredita que o empobrecimento da população possa ter levado ao esquecimento deste tipo de receitas: “talvez porque não havia apetência ou porque a população era muito pobre e na altura não pudesse recorrer ao açúcar”.

Atualmente, e já com doces conventuais produzidos, a pesquisa continua a fim de alargar os resultados obtidos, tal como refere Fernando Borges "estamos neste momento a fazer pesquisa no Arquivo Distrital de Braga e estamos a contactar os conventos e os mosteiros que ainda existem da mesma congregação”.



Licores mais doces – A loja

Não esqueçamos a essência do negócio de Júlia e Fernando: os licores. Estes são feitos de modo artesanal, com um álcool próprio para licores e sem o uso de aguardente, a fim de não emprestar qualquer sabor aos frutos obtendo-se o sabor total da fruta que se coloca a macerar. Por sua vez, o cuidado na escolha dos ingredientes é grande, a fim de garantir a qualidade final do licor. Também aqui foi feita uma pesquisa, a fim de obter receitas muito antigas, contrabalançando com outras mais modernas. O leque de sabores é vasto, mas dos 32 produzidos, apenas 21 são comercializados pois, como refere Júlia Borges, “há alguns que já não fazemos e temos até dificuldade que as pessoas os experimentem”. O licor de poejo é um exemplo. “No Alentejo é o licor de eleição, mas aqui as pessoas nem conhecem”, revela Júlia. Outros licores se somam à lista dos menos apreciados, como o de alfarroba ou o licor de bolota. “Há assim uma série de sabores que as pessoas, por não conhecerem, já não experimentam”, afirma Júlia com algum desânimo. Fernando Borges destaca que há exemplos de licores produzidos com fruta da região, mas que ainda assim não são muito procurados: “nós por exemplo temos um licor que é extraordinário – licor de medronho –, que é feito com medronho aqui da serra; e é engraçado porque são as pessoas do sul ou da zona do Porto que apreciam mais esse licor e aqui ignoram o medronho”. 




Se, tal como nós, sentiu curiosidade por estes produtos tradicionais carregados de história, poderá adquiri-los de duas formas, tal como explica Fernando Borges: “em lojas de produtos tradicionais gourmets - temos alguns clientes aqui em Chaves (a principal é a marca D'Chaves), no Porto, em Braga, em Lisboa - e a outra forma é através da internet, porque nós não temos uma loja física onde as pessoas se possam dirigir”.


Júlia e Fernando Borges levam também os seus “Licores Mais Doces” ao certame “Sabores de Chaves”, sendo quase certo encontra-los numa das várias barraquinhas que se encontram nas diferentes feiras que decorrem ao longo do ano. Preocupados com o ainda pouco interesse em produtos tradicionais, o casal confessa-nos que está a preparar uma feira mensal, “que é capaz de ter êxito e que não será só para nós, será para todos os produtores artesanais”. O objetivo, admite Fernando, é tornar esta feira numa “montra dos produtos artesanais, uma loja ao ar livre”.








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