Os Meus Professores Salesianos #10


Por: Manuel António Araujo

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Na década de 60 do século anterior, o Colégio Salesiano de Arouca levava os seus alunos aos exames nacionais no antigo Liceu D. Manuel II , no Porto, e as melhores notas eram deles. Os professores eram padres e assistentes (futuros padres) e nenhum deles conhecia os ensinamentos livrescos da pedagogia com que agora se enche a boca e se pretende que sejam os baluartes para o sucesso. Os meus professores do Colégio Salesiano eram apenas cientificamente bons.

Lembro-me das imensas horas diárias que tínhamos para brincar e rezar, e no entanto estudávamos afincadamente e éramos felizes.

Os meus professores sabiam muito melhor do que sabem hoje os pedagogos oficiais, o que era uma criança.

Sabiam por exemplo, que as crianças têm um sentido de cooperação assinalável quando são tratadas na observância de uma das suas mais fundamentais necessidades para o seu desenvolvimento: a brincadeira. Não me lembro de alguma vez ter ido para as aulas contrariado, ou para a sala de estudo, ou mesmo quando me proibiam de ouvir os relatos de futebol (naquela altura a TV era escassa e não se transmitiam os jogos), porque antes dessas tarefas, ou no fim delas, nós sabíamos que tínhamos um extenso tempo de recreio, a fazer os jogos mais divertidos, onde pontuava o futebol.

Sabiam também que o imaginário das crianças deve ser cultivado e vivido e por isso, todos os sábados e domingos vestíamos os equipamentos dos clubes mais importantes a nível nacional e íamos para o campo do Arouca, de manhã, jogar futebol, verdadeiros Eusébios, Colunas e por aí fora. Nada neste mundo se pode equiparar à ânsia exaltada duma criança numa noite de véspera. Véspera dum Benfica-Porto no campo municipal do Arouca, véspera de vestir o equipamento que religiosamente arrumávamos aos pés da cama para no dia seguinte irmos jogar; e eu, benfiquista doente, quantas vezes enverguei a camisola do Porto e jogava como um profissional!

Finda a manhã desportiva almoçávamos e tínhamos uma tarde de estudo.

Ainda hoje me espanta, quando olho os miúdos de 11-12 anos, como era possível, naquele tempo, sermos tão responsáveis, tão religiosos e tão felizes! Rezávamos mais de 3 horas por dia e fazíamo-lo quase espontaneamente, embora houvesse uma campainha que nos indicava o momento do terço, mas era como se o toque fosse o prolongamento da brincadeira, numa outra vertente, porque quando se é feliz, é-se feliz a fazer seja o que for.

Sem computadores, nem essa panóplia de jogos informáticos e electrónicos que hoje estão ao dispor das crianças, tínhamos a alegria contagiante dos professores, o seu apoio, a sua infância para imaginarmos jogos, para desenvolvermos a inteligência, para sermos mais amigos.

Eles sabiam que a uma criança, à sua curiosidade naïve, era importante a relevância, a responsabilização; então éramos nós que, com 10, 11, 12 anos, ajudávamos à missa todos os dias com a felicidade dos escolhidos; porque o padre conselheiro (soube há dias que morrera, paz à sua alma), entrava na sala de estudo de manhã e convocava em particular e ao ouvido, os ajudantes da missa dessa manhã. Talvez achem isto banal, mas do ponto de vista de um miúdo, este gesto quase íntimo, tão particular, este segredo, no meio de centenas de miúdos, ganha ressonâncias extraordinárias de escolha, de distinção, de importância. Nada mais decisivo para o crescimento intelectual da criança, do que atitudes desta índole.

Nunca estudaram pedagogia os meus professores, nunca perderam tempo em acções de formação, nunca tiveram aulas assistidas e todos os anos preparavam os estudantes para serem os melhores dentre todos os que faziam exames nacionais no D. Manuel II.

Havia uma política de educação que assentava na diversidade, porque as crianças são impacientes e cansam-se depressa. Havia cinema, filmes inocentes, mas fantásticos para os nossos olhos ainda cândidos e virginais, havia retiros espirituais em que, meninos de 11, 12 anos, durante três dias, se mantinham em silêncio, numa reflexão hoje impensável para a mesma idade (havia horas em que se podia conversar, justamente nas horas das refeições). Mas tudo se fazia com a ideia de que estávamos a ser importantes e responsáveis; ora a noção de responsabilidade não se cria com atitudes e decisões que não se explicam; todos nós sabíamos por que se fazia o que se fazia, e que éramos peças decisivas para ser feito o que era feito.

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Hoje metem-se as crianças numa sala de aula, por exemplo, e obrigam-se a lá estar com um professor que não lhes pertence, que nunca viram, eventualmente, sem se lhes explicar por que se faz aquilo. Hoje, os “meninos” como se diz (acho espantoso como rapazes de 18 e 19 anos são “os meninos” num significado que não encerra carinho, mas infantilização e desresponsabilização) vão para explicações, para salas de estudo, para cursos cuja vocação não é vocação, mas desejo dos papás. Como os meus professores eram sábios, comparados com os pedagogos de hoje!

A humildade era outro valor sempre presente, e não recorriam necessariamente, aos exemplos hagiográficos, praticava-se diariamente nos beijos faciais com que os senhores padres nos cumprimentavam de manhã, sobretudo a figura tutelar do padre director, uma espécie de reitor que nós víamos maravilhados pelo respeito que inspirava e pela facilidade com que a ele assedíamos.

A educação era tão eficiente que, mesmo reprovando, a alegria mantinha-se porque a reprovação não era envenenada pelo espírito competitivo, mas apenas acontecia porque acontecera não termos sido tão aplicados naquele ano, no ano seguinte seria melhor (devo dizer que quem no colégio tivesse media inferior a 12 valores, não era levado a prestar provas nacionais no Liceu).

Tínhamos, se não estou em erro, 6 disciplinas, cujos livros não nos pesavam; mas os meus professores sabiam que não são as muitas disciplinas que preparam as crianças, nem as cargas horárias repletas. Quem prepara, falando desta faixa etária, são as atitudes, os comportamentos, e o modo como convidamos as crianças a serem importantes nas atitudes e nos comportamentos.

Hoje, há tanta hipocrisia quando falamos nos “meninos” que, enquanto as crianças não sentem o calor da palavra, os rapazes sentem nela uma infantilidade serôdia.

E ambos, crianças e rapazes são hoje, na pedagogia de ponta, tratados por “meninos.”


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